segunda-feira, 15 de setembro de 2008


MOACYR SCLIAR

A boneca assassinada

Com o tempo, tornara-se ciumento e, num ataque de fúria, cravou-lhe uma faca no peito e declarou-a morta

Policiais encontraram uma boneca em tamanho natural em uma floresta da cidade de Izu no Japão. Segundo a polícia, a boneca, que estava num saco de dormir, foi encontrada após uma denúncia anônima, e, confundida com um cadáver, encaminhada para autópsia.

Somente quando um médico abriu o saco de dormir constatou-se que o corpo era de uma boneca de plástico. A boneca usava peruca, saia e blusa. Folha Online

OS DOIS IRMÃOS eram homens idosos, solteirões, aposentados; e os dois eram pobres, bastante pobres. E foi exatamente por isso, por causa da falta de dinheiro, que resolveram dividir um pequeno apartamento.

A rigor, prefeririam viver sós, porque ambos detestavam a vida social; mas, como disse um deles, já que era preciso partilhar a moradia, seria preferível fazê-lo com um irmão do que com um estranho.

No começo correu tudo bem. O mais velho redigiu um minucioso regulamento, detalhando o que cada um podia e não podia fazer no apartamento.

Nenhum dos dois podia, por exemplo, ocupar o único banheiro por mais que 20 minutos; e nenhum dos dois poderia ver televisão após as 22 horas.

E, ah, sim, nenhum dos dois poderia trazer mulher. Necessidades sexuais, em existindo, teriam de ser satisfeitas fora dali.

Tudo corria relativamente bem, até que um dia o mais moço entrou em casa carregando um enorme pacote.

"O que é isso?", perguntou o mais velho, intrigado. Em resposta, o outro abriu o pacote. Era uma boneca em tamanho natural, uma linda boneca, com belos olhos e lábios sensuais. Era óbvio o uso que o irmão mais moço queria fazer dela.

O mais velho protestou: aquilo contrariava o regulamento. Afinal, tinham combinado que nenhum dos dois poderia trazer mulher para o apartamento. Não é uma mulher, respondeu o outro, irritado.

É uma boneca, e ela vai ficar aqui, goste você ou não. A boneca ficou. E já naquela noite começou o festival de sexo.

Em seu quarto, o irmão mais moço descarregava na boneca (que tinha todos os recursos para isso) o seu desejo longamente reprimido. E o fazia gemendo, gritando, uivando, impedindo o outro de dormir.

Logo aquilo se transformou numa rotina. E logo o irmão mais velho começou a se sentir atraído pela sensual boneca. Pediu licença ao mano para usá-la também.

Para sua surpresa, recebeu como resposta uma indignada negação. Monogâmico, o irmão mais moço não repartiria com ninguém o objeto de seu desejo. O mais velho não pôde fazer nada. Com o tempo, porém, o amante da boneca foi se tornando ciumento.

Acusava-a de lançar olhares tentadores para o "velho decrépito". Gritava com ela, esbofeteava-a e um dia, num ataque de fúria, cravou-lhe uma faca no peito.

Com o que, declarou-a oficialmente morta. Colocou-a num saco de dormir, ainda usando peruca, saia e blusa, e jogou-a numa floresta nas vizinhanças da cidade.

Aquilo era demais. Revoltado, o irmão mais velho ligou para a polícia e denunciou o crime.

No dia seguinte os jornais comentavam, em tom de deboche, o vexame pelo qual os policiais tinham passado. O irmão mais velho não achou graça nenhuma.

Ainda que a polícia não o admitisse, um assassinato tinha sido cometido, disso ele estava certo. Porque há bonecas que são praticamente humanas. E há seres humanos que, a rigor, não passam de bonecos malvados.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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