sábado, 27 de setembro de 2008

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A ÍNTEGRA DAS CARTAS

As duas cartas manuscritas de Machado a Carolina que restaram da correspondência íntima do casal foram reencontradas há um mês no Museu da República, do Rio de Janeiro.

Para: CAROLINA AUGUSTA XAVIER DE NOVAIS
Fonte: MUSEU DA REPÚBLICA. Arquivo Histórico. Manuscrito original.
[Rio de Janeiro,] 2 de março [de 1869].
Minha Carola.


Já a esta hora deves ter em mão a carta que te mandei hoje mesmo, em resposta às duas que ontem recebi. Nela foi explicada a razão de não teres carta no domingo; deves ter recebido duas na segunda-feira.

Queres saber o que fiz no domingo? Trabalhei e estive em casa. Saudades de minha Carolina, tive-as como podes imaginar, e mais ainda, estive aflito, como te contei, por não ter tido cartas tuas durante dois dias. Afirmo-te que foi um dos mais tristes que tenho passado.

Para imaginares a minha aflição, basta ver que cheguei a suspeitar oposição do Faustino, como te referi numa das minhas últimas cartas. Era mais do que uma injustiça, era uma tolice.

Vê lá; justamente quando eu estava a criar estes castelos no ar, o bom Faustino conversava a meu respeito com a Adelaide1 e parecia aprovar as minhas intenções (perdão, as nossas intenções!)

Não era de esperar outra coisa do Faustino; foi sempre amigo meu, amigo verdadeiro, dos poucos que, no meu coração, têm sobrevivido às circunstâncias e ao tempo. Deus lhe conserve os dias e lhe restitua a saúde para assistir à minha e à tua felicidade.

Contou-me hoje o Araújo2 que, encontrando-se num dos carros que fazem viagem para Botafogo e Laranjeiras, com o Miguel, este lhe dissera que andava procurando casa por ter alugado a outra. Não sei se essa casa que ele procura é só para ele, se para toda a família.

Achei conveniente comunicar-te isto; não sei se já sabes alguma coisa a este respeito. No entanto, espero também a tua resposta ao que te mandei dizer na carta de ontem – relativamente à mudança.

Dizes que, quando lês algum livro, ouves unicamente as minhas palavras, e que eu te apareço em tudo e em toda a parte? É então certo que eu ocupo o teu pensamento e a tua vida? Já mo disseste tanta vez, e eu sempre a perguntar-te a mesma coisa, tamanha me parece esta felicidade. Pois, olha; eu queria que lesses um livro que eu acabei de ler

1 Adelaide Xavier de Novais, irmã de Carolina, que viera para o Brasil pouco depois desta. (IM)

2 Provavelmente o amigo comum Manuel de Araújo*. (IM)

3 La Famille - la Mère (1865), segundo Massa (1995). Obra do polígrafo francês Eugène Pelletan (1813-1884), por quem Machado teve grande admiração desde muito jovem. Dedicou-lhe o poema “O Progresso (Hino à Mocidade)” e citou-o inúmeras vezes.

A respeito de suas idéias progressistas sobre a emancipação feminina, escreveu, em crônica publicada pelo Diário do Rio de Janeiro (21/11/1861):


há dias; intitula-se: A família3. Hei de comprar um exemplar para lermos em nossa casa como uma espécie de Bíblia sagrada. É um livro sério, elevado e profundo; a simples leitura dele dá vontade de casar.

Faltam quatro dias; daqui a quatro dias terás lá a melhor carta que eu te poderei mandar, que é a minha própria pessoa, e ao mesmo tempo lerei o melhor (...)4.

“Pretende Eugène Pelletan que a mulher, com o andar dos tempos, há de vir a exercer no mundo um papel político. Sem entrar na investigação filosófica da profecia, a que dá uma tal ou qual razão a existência de certas mulheres da sociedade grega e da sociedade francesa, eu direi que é esse um fato que eu desejava ver realizado, em maior plenitude do que pensa o autor da Profession de Foi.

Eu quisera uma nação, onde a organização política e administrativa parasse nas mãos do sexo amável, onde, desde a chave dos poderes até o último lugar de amanuense, tudo fosse ocupado por essa formosa metade da humanidade. O sistema político seria eletivo.

A beleza e o espírito seriam as qualidades requeridas para os altos cargos do estado, e aos homens competiria exclusivamente o direito de votar. / Que fantasia! Mas, enquanto esperamos a realização dessa linda quimera, à mulher cabem outros papéis, que se não satisfazem a inspiração de um humorista, podem contentar plenamente o espírito de um filósofo e de um cristão.” (IM)

4 Esta carta, incompleta, e a anterior – tão emocionantes – são o que restou da correspondência de Machado e Carolina. Ambas pertenceram à sobrinha e afilhada do casal, e herdeira universal de Machado, Laura Braga da Costa, mais tarde Laura Leitão de Carvalho (1894-1988).

Concordam os biógrafos ao afirmar que, a pedido expresso do escritor, após seu falecimento fossem destruídos os papéis e outras recordações de sua companheira. Porém, um relato de Herculano Borges da Fonseca (1960) altera um pouco essa versão. Referindo-se ao pequeno móvel queimado com as relíquias, diz o autor:

“O famoso móvel, comprado por Carolina com suas economias mensais, foi mandado entregar por Machado às irmãs Pinto da Costa, que moravam perto, com instruções para que estas o dessem a minha tia, Fanny de Araújo, então residente na rua Moura Brasil, a quem Machado e Carolina votavam excepcional afeição.

Sua vontade foi cumprida. Entretanto, jamais consegui apurar, com certeza, se Machado quisera as cartas queimadas ou não. / Sempre ouvi contar que tia Fanny o fizera para que olhos estranhos não profanassem o santuário de amor doméstico do casal;

sempre ouvi observações de pessoas que ficaram inconsoláveis com o zelo excessivo de minha tia que, espontaneamente ou cumprindo instruções de Machado, agira em relação a ele e a Carolina, pensando mais nos grandes amigos que no escritor.

De qualquer forma, recatado como foi, estou certo de que o autor do Memorial de Aires ratificaria, com um sorriso irônico, aquela deliberação, que veio privar-nos, os bisbilhoteiros da posteridade, do maior e mais saboroso quitute e da mais preciosa relíquia de seu pequeno mundo.

Revista da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis n.º 3, 1960. (IM)

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