segunda-feira, 29 de setembro de 2008



29 de setembro de 2008
N° 15743 - LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Bartleby

Imagine-se um funcionário de escritório que necessite dramaticamente de seu emprego; imagine-se que ele receba uma importante ordem de seu patrão; imagine-se que ele, por preguiça, desobedeça à ordem.

A demissão será natural ou, pelo menos, será natural uma reprimenda seguida de advertências. Imagine-se, entretanto, que esse funcionário, à ordem do patrão, responda-lhe direta e serenamente: “Prefiro não fazer”. Que atitude tomar?

Demiti-lo de imediato? Simples demais. À perturbação seguir-se-ia a ira, a perplexidade, o desconcerto e, por fim, a descoberta das razões para a negativa, provavelmente algum motivo existencial a preceito para justificar um conto ou uma novela.

Tudo isso seria um caminho razoável, na mão de um escritor convencional; na mão de Herman Melville, transforma-se numa obra-prima, igualável ao imenso e metafísico Moby Dick. Falamos de Bartleby, o Escriturário: Uma História de Wall Strett (Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street), publicada em 1853.

O patrão é um advogado com escritório em plena Nova York. É ele quem narra o ocorrido. O leitor segue com crescente angústia a sucessão das negativas do funcionário, as quais percutem como um pesadelo na cabeça do advogado.

Ter a sua frente Bartleby, com uma sobranceria a que se mistura orgulho e ingenuidade, sempre a repetir “prefiro não fazer”, é um exercício de paciência e um desafio à curiosidade. Pois a essa curiosidade sucumbe o nosso advogado, decidido a descobrir o mistério de seu estranho subalterno.

Não o demite; ao contrário, fascina-se morbidamente por Bartleby, a ponto de desconfiar de sua própria sanidade mental. Como o mesmo narrador diz, “nada molesta tanto uma pessoa sensata quanto uma resistência passiva”.

Esse incômodo vai atingindo tal paroxismo que o leitor, solidário com o advogado e à busca de razões, não consegue largar o livro antes da linha final. Eis aí o melhor sintoma de uma boa, excepcional literatura.

Isso nos leva a pensar o quanto o “não” é criativo. É um “não”, por exemplo, que sustenta o romance A História do Cerco de Lisboa, de José Saramago; a trama deriva de um indevido “não”, que o revisor de uma editora acrescenta indevidamente ao texto em que está trabalhando.

O “sim” nunca resultou em boa literatura.

A verdadeira literatura só acontece quando ocorre algo diferente do esperado pelo leitor. O “não” está na base de todo bom livro. Pense naqueles que você já leu.

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