terça-feira, 30 de setembro de 2008



30 de setembro de 2008
N° 15744 - MOACYR SCLIAR


A esquerda e a beleza

Na adolescência fiz parte de um grupo judaico de esquerda. Um grupo muito radical, não só nas idéias, como também no estilo de vida. Uma das regras desse grupo era o completo desprezo pela aparência física.

As meninas não podiam usar roupas bonitas, nem sapatos de salto alto, nem cosméticos. Os rapazes não podiam usar terno nem gravata, esta considerada um símbolo da burguesia.

O tempo passou e meses atrás fui convidado por esse mesmo grupo, que ainda existe, e que queria me fazer uma homenagem no Rio de Janeiro, lançando um prêmio literário com meu nome. Fui lá. Na sede, na Zona Sul, fui recebido por uma bela moça, usando um vestido ousadamente decotado, e sapatos de salto alto.

Perguntei pela pessoa que iria coordenar o evento. Para minha surpresa era ela própria. Aliás, não só coordenava o evento, coordenava o grupo. Não pude me conter: mas com aquelas roupas? Ela riu: os tempos mudam, meu caro.

Mudam mesmo, e se vocês querem uma prova disso olhem as fotos de três candidatas a prefeita, a Maria do Rosário, a Luciana, a Manuela. Três moças bonitas, elegantes, inteligentes. E as três de esquerda. No passado, a aparência delas teria de ser completamente diferente, sobretudo se pertencessem ao Partido Comunista.

Na finada União Soviética, que era a grande referência para os comunas, beleza simplesmente não tinha importância (a bela tenista Maria Sharapova lá seria uma impossibilidade). Não havia oferta de artigos como vestidos elegantes, ou colares, ou cosméticos.

A idéia era de que as mulheres tinham de se preocupar com a vitória do comunismo, com o trabalho, com a militância, não com a aparência pessoal. Claro, havia algumas moças, sobretudo atrizes de cinema, que se destacavam pela beleza, mas tinha de ser beleza natural.

O mesmo poderia se dizer das militantes partidárias em todo o mundo. Um exemplo foi Simone Weil, cujo centenário de nascimento será lembrado no ano que vem.

De uma confortável família judia – o pai era médico – Simone teve uma mãe complicada, que temia germes mais que qualquer outra coisa no mundo (era a época que, em Paris, a microbiologia chegava ao auge) e educou a filha para evitar qualquer contato físico e odiar a sujeira.

“Sou repugnante”, costumava dizer a pequena Simone, que era de uma inteligência brilhante, de uma cultura assombrosa, mas que não queria nada com homens:

seu apelido era “Virgem vermelha”. Tornou-se operária, participou em greves e demonstrações, lutou na Guerra Civil Espanhola, mas a certa altura tornou-se mística e abandonou o comunismo.

Ficou tuberculosa, mas por causa da sua patológica necessidade de autopunição não se tratava e também não comia: se os pobres não têm comida, esse era o seu raciocínio, ela também não poderia tê-la.

Uma estranha forma de anorexia nervosa, portanto. Escusado dizer que Simone não dava a mínima para a aparência física. Morreu aos 34 anos.

Durante muito tempo, militantes de vários movimentos seguiram o exemplo dela. Havia quem recusasse até o banho, considerado coisa de burguês, o que provavelmente tornava irrespirável a atmosfera das reuniões.

Mas tudo isso ficou para trás. É possível, sim, mudar o mundo, torná-lo mais justo, menos feroz.

Mas o inimigo a combater não é o sabonete, nem o batom, nem o vestido elegante. Esta é uma descoberta do nosso tempo. Não chega a ser uma descoberta revolucionária, mas é, pelo menos, sensata.

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