quinta-feira, 25 de setembro de 2008



25 de setembro de 2008
N° 15739 - LF VERISSIMO


Auto-de-fé

O vocabulário dessa crise do capital financeiro é evocativo: as instituições falidas estão sendo “sanadas”, livradas dos seus ativos “podres”, “purgadas” das suas práticas espúrias, garantidas contra o “contágio” de um mercado doente...

Poderíamos estar na Veneza do século 13, ouvindo pregações contra o pecado da usura e seus efeitos na higiene social e na alma dos cidadãos, ou na Florença de Savonarola, que também misturava corpo sensual e corpo político e pretendia purgar os dois da ganância e das tentações do dinheiro autogerado, claramente uma idéia do Diabo.

Os cristãos de então consideravam a cobrança de juros uma comercialização herética do tempo, e vinha de Aristóteles a condenação da usura porque dinheiro não pode procriar como um animal.

Um contemporâneo de Shakespeare escreveu que o usurário vivia da “lechery”, lascívia, do dinheiro e não era incomum relacionarem a reprodução antinatural de dinheiro por dinheiro com luxúria e prostituição.

O que naquela época era antinatural com o tempo se tornou natural e a mudança começou na metafísica: para que os cristãos que lucrassem com juros não fossem condenados à danação eterna, inventou-se o Purgatório, de onde os pecadores saem sanados e recuperados para o Céu.

Depois de alterar a cosmogonia cristã, não foi difícil para o capitalismo financeiro ganhar o mundo e, nos últimos anos, dominá-lo.

Mas, curiosamente, se o dinheiro gerado por dinheiro se tornou respeitável e hoje é a forma mais rentável, portanto mais abençoada, de capitalismo, para expiar os excessos da prática ainda se recorre à linguagem de Savonarola.

O Diabo, afinal, tem a última palavra. O pecado acabou, mas a culpa continua.

O americano Tom Wolfe escreveu um romance sobre, entre outras coisas, um Mestre do Universo, que é o nome que se dão os executivos de financeiras que têm ganhos obscenos com o dinheiro dos outros, e seus infortúnios numa Nova York conflagrada em que sua riqueza e seu poder não o protegem da penitência que se aproxima.

Fizeram um filme do livro, chamado A Fogueira das Vaidades, o nome da grande fogueira comunitária em que Savonarola mandava os florentinos queimarem suas posses de luxo e recuperarem a virtude perdida com a ganância e o uso anticristão do dinheiro.

O livro eu não li e o filme não é bom, mas Wolfe foi profético: chegou finalmente a conta para os Mestres do Universo pagarem - ou os contribuintes americanos pagarem por eles. Ninguém irá para o Inferno, ou para o Purgatório, ou sequer será queimado, como o próprio Savonarola, pelos seus excessos.

A virtude recuperada será a do velho mercado livre, talvez só com um pouco mais de comedimento e controle. Mas por um breve momento voltamos ao passado e assistimos a um educativo auto-de-fé sobre a usura castigada e a ganância penitente.

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