sexta-feira, 26 de setembro de 2008



26 de setembro de 2008
N° 15740 - DAVID COIMBRA


Caído na calçada

Ontem saí de casa mais cedo do que o normal e a temperatura era amena de primavera e o dia estava amarelo e azul e do som do meu carro se evolava o rock suave da Itapema e eu me sentia realmente bem. Estacionei numa rua quase bucólica do Menino Deus e vi que ali perto um catador de papel puxava sua carrocinha sem pressa.

Era magro e alto, devia andar nas franjas dos 50 anos e tinha a pele luzidia de tão negra. Ao seu lado saltitava um menino de, calculei, uns quatro anos de idade, talvez menos.

Devia ser o filho dele, porque o observava com um olhar quente de admiração, como se aquele homem fosse o seu herói. Bem. Ao menos foi o que julguei, certeza não podia ter.

Já ia me afastar quando, por entre as grades da cerca de uma creche próxima, voou um brinquedo de plástico. Um desses robôs cheios de luzes e vozes, que se transformam em nave espacial e prédio de apartamentos, adorado pelas crianças de hoje em dia.

Algum garoto devia ter atirado o brinquedo para cima por engano, ou fora uma gracinha sem graça de um amigo. O menino que era dono do brinquedo colou o rosto na grade como se fosse um presidiário, angustiado.

O filho do catador de papel correu até a calçada, colheu o robô do chão e não vacilou um segundo: retornou faceiro para junto do pai, o brinquedo na mão, feito um troféu.

Olhei para o menino atrás da cerca. Estranhamente, ele não falou nada, não gritou, nem reclamou. Ficou apenas olhando seu brinquedo se afastar na mão do outro, os olhos muito arregalados, a boca aberta de aflição.

Muito orgulhoso, o filhinho do catador de papéis mostrou o brinquedo ao pai. O pai olhou. E fez parar a carrocinha. Largou-a encostada ao meio-fio. Levou a mão calosa à cabeça do filho.

E se agachou até que os olhos de ambos ficassem no mesmo nível. A essa altura, eu, estacado no canteiro da rua, não conseguia me mover.

Queria ver o desfecho da cena. O pai começou a falar com o menino. Falava devagar, com o olhar grave, mas não parecia nervoso. Explicava algo com paciência e seriedade. O menino abaixou a cabeça, envergonhado, e o pai ergueu-lhe o queixo com os nós do dedo indicador.

Falou mais uma ou duas frases, até que o filho balançou a cabeça em concordância. A seguir, o menino saiu correndo em direção à creche. Parou na grade, em frente ao outro garoto.

Esticou o braço. E, em silêncio, devolveu-lhe o brinquedo. Voltou correndo para o pai, que lhe enviou um sorriso e levantou a carrocinha outra vez. Seguiram em frente, o pai forcejando, o filho ao lado, agora não saltitante, mas pensativo, concentrado.

Então, tive certeza: aquele olhar com que o menino observara o pai era mesmo de admiração, ele era de fato o seu herói.

Burra boa

Em 1986, o ministro Dilson Funaro lançou o Plano Cruzado, com congelamento de preços e tudo mais. As pessoas saíam à rua para delatar comerciantes que remarcassem seus produtos. Eram os fiscais do Sarney.

Um sujeito de Curitiba ficou famoso por um discurso que pronunciou dentro de um supermercado, fechando-o em nome do povo brasileiro e bibibi. Em três meses, o Plano Cruzado começou a vazar. Em seis, virou geleca. Por quê? Era rigoroso demais.

A inflação só foi debelada pelo Plano Real, com a macia URV, que acostumou lentamente a população à mudança. Aí está: o brasileiro, mesmo que esteja clamando por autoridade, que está, não reage bem ao autoritarismo – nem quando o apóia!

Eu já tinha dito isso, já tinha dito que a Lei Seca não funcionaria precisamente por este motivo. Não funcionou. Não funcionará. Porque é uma lei boa, porém burra.

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