segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008


MOACYR SCLIAR

Lágrimas da cebola & outras lágrimas

Desde então ela se proibiu de chorar. Mas descobriu que, pelo menos, poderia verter lágrimas. Descascando cebolas

Cientistas da Nova Zelândia e do Japão criaram uma cebola "antilágrimas". Eles anularam, no alimento, a atuação de um gene responsável pela gênese da enzima que causa este efeito.

Um dos diretores da pesquisa, Colin Eady, disse que a descoberta pode acabar com um dos maiores "problemas" da cozinha: o fato de que cortar uma simples cebola nos faz chorar. Folha Online, 1º de fevereiro de 2008.

DE UMA COISA Aracy sempre teve certeza: cozinha e tristeza governavam sua vida. À cozinha estava destinada desde muito criança: de família pobre, não conseguiu completar os estudos.

A mãe, doente, não podia tomar conta da casa, e o pai decidiu que ela, a filha mais velha, assumiria esta função.

E aí era aquela rotina: acordar às cinco da manhã, preparar o café para o pai e os irmãos, antes que eles saíssem para o trabalho na roça, depois limpar a casa, lavar a roupa, dar comida para a mãe.
À noite estava tão cansada que, depois de lavar os pratos do jantar, caía na cama direto.

Será que minha vida vai ser só isso, perguntava-se, angustiada. Temia que sim: moça pobre, feia, sequer sonhava com um namorado, mesmo porque nunca tinha tempo para namorar. E quando pensava no triste futuro que a esperava tinha vontade de chorar.

Só que não poderia chorar. O pai, os irmãos não admitiriam isso, essa demonstração de fraqueza.

Da única vez em que ela prorrompeu em prantos, enquanto servia o jantar, eles ficaram irritados: o que é isso, Aracy, chorar não adianta nada, chorar não melhora as coisas, faz como a gente e agüenta firme. Desde então ela se proibiu de chorar. Mas descobriu que, pelo menos, poderia verter lágrimas. Descascando cebolas.

Cebola não faltava no sítio: o pai e os irmãos gostavam muito, tinham até uma pequena plantação do vegetal. De modo que, quando ela se sentia triste, tudo o que tinha a fazer era preparar uma salada de cebolas.

As lágrimas corriam-lhe livremente pelo rosto, mas não se preocupava sequer em enxugá-las; se o pai ou um irmão lhe perguntava a respeito, tudo o que tinha de fazer era incriminar a cebola: essa coisa faz a gente chorar.

O tempo passou. Os pais faleceram, os irmãos seguiram cada qual o seu caminho e Aracy acabou casando com o carteiro da região. Era um bom homem, muito gentil; viviam bem e tiveram três filhos, mas a vontade de chorar continuava perseguindo Aracy.

Era como se a tristeza a tivesse impregnado, passando a fazer parte do seu modo de ser. O marido não se irritava por vê-la chorando; mas ficava tão triste, e Aracy gostava tanto dele, que logo voltou às cebolas.

O marido e os filhos nem gostavam muito de cebola, mas comiam para agradar à mãe. Afinal, se ela derramava copiosas lágrimas preparando a salada, eles tinham de mostrar que o sacrifício valia a pena.

Recentemente Aracy ficou sabendo que cientistas -esses cientistas, sempre inventando coisas- haviam descoberto uma cebola que não faz chorar.

E esta notícia a deixou triste, tão triste que teve de correr para a cozinha e descascar uma cebola (daquelas antigas e boas cebolas) para chorar um pouco.

Mas a pergunta agora não sai de sua cabeça: como chorar quando as cebolas não provocarem mais lágrimas?

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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