4
de agosto de 2013 | N° 17512
ARTIGOS
- Fernando Luis Schüler*
O Eichmann nosso de cada
dia
O
julgamento de Albert Eichmann, em Jerusalém, em 1961, voltou ao debate em
função do filme de Margarethe Von Trotta, Hannah Arendt. O filme se concentra
na figura de Arendt e sua altivez intelectual. Ela vai até Jerusalém para
cobrir o julgamento para a revista The New Yorker. Suas conclusões são
conhecidas: não havia um monstro por trás de um crime monstruoso. Havia apenas
uma pessoa assustadoramente comum, argumentando perfeitamente sobre a
impessoalidade de seus atos.
Em
um dado momento do processo, Eichmann arrisca um lance filosófico, definindo-se
como alguém que sempre viveu segundo a concepção kantiana do dever. Arendt
percebeu a inversão. A moralidade kantiana não nos pede a obediência cega, mas
o uso da nossa capacidade de julgar. Julgar com autonomia, imparcialidade,
buscando a “ação conforme a regra” que definimos imaginando ocupar, reciprocamente,
a posição de qualquer pessoa.
Eichmann
não estava preocupado com nada disso. Sua interpretação muito particular da
regra kantiana o mandava simplesmente obedecer ao Estado e fazer um bom
trabalho. A Alemanha estava em guerra, e a guerra tinha dessas coisas. Havia o
Führer, sabia-se quem eram os inimigos e havia um método de fazer as coisas. Do
outro lado da guerra, também havia muita gente obedecendo cegamente ao Estado.
O
coronel Paul Tibbets, por exemplo, que na manhã de 6 de agosto de 1945, no
comando do Enola Gay, apertou o botão que disparou a bomba que iria, segundos
depois, exterminar a vida de 90 mil pessoas em Hiroshima. Tibbets viveu até os
92 anos e nunca se disse arrependido. Se fosse sequestrado e levado a
julgamento, talvez também dissesse que cumpria ordens, mas não creio que
citasse Kant. Ele poderia argumentar que estava do lado certo da guerra, mas
tenho dúvidas de que teria feito diferente, ele ou qualquer outro, se houvesse
caído, por força do destino, do lado errado.
É
tranquilizador pensar que Arendt está tratando de um grande mal, talvez o maior
de todos, que foi a barbárie nazista, mas há algo mais perturbador aí. Quem
sabe Eichmann agiu em boa-fé, apenas tendo feito um juízo equivocado a respeito
do que consistia o seu dever.
Disciplinou
sua mente de modo que o sofrimento das pessoas que ele mandava para os campos
de concentração não lhe dissesse respeito. Talvez sua adesão subjetiva ao
regime tenha sido muito mais profunda do que se dispôs a reconhecer no tribunal.
Não importa. A Alemanha, à época, e boa parte da Europa, estava forrada de
Eichmanns. Eles se converteram rapidamente em bons cidadãos, logo após a
guerra, sem que nada houvesse mudado em sua natureza. A conclusão não é das
mais simpáticas: a banalidade mora dentro de nós. Na nossa propensão a fazer a
mesma coisa que Eichmann, eventualmente em situações menos dramáticas.
No
Brasil, muita gente gostou, e sente saudade, da época em que se fechou o
Congresso, os partidos, não fazendo muita questão de saber sobre os centros de
tortura, desaparecimentos políticos e coisas assim. Ainda hoje há um partido
político, no Brasil, com 13 deputados no Congresso Nacional, que acha bacana
lançar uma nota elogiando um dos mais grotescos ditadores da nossa época, o
norte-coreano Kim Jong-il. São todos pequenos Eichmanns?
Essas
pessoas foram ou são movidas por más intenções, ou simplesmente por um déficit
de empatia, ou uma “empatia seletiva” para com o sofrimento humano? Se elas
cometem um erro de julgamento, no que ele se diferencia do erro de Eichmann,
fora a diferença no tamanho do mal que produzem? A banalidade do mal, afinal de
contas, depende da natureza do mal praticado, ou em um tipo de atitude quando
formulamos nossos juízos?
O
que Arendt nos pede não é pouca coisa: responsabilidade no ato de julgar. Agora
que todos têm um smartphone para digitar palavrinhas e julgar o mundo, várias
vezes por dia, isso parece fazer especialmente sentido. Julgamos segundo nossas
pequenas paixões políticas? Nossos preconceitos? Arrisco dizer que, nesta época
em que todos nos tornamos “intelectuais”, o risco maior não é o da obediência
ao poder, do fanatismo ou de alguma ameaça totalitária, mas meramente aquilo
que o filósofo Harry Frankfurt chamou de bullshit, a besteira mesmo, algo que
falamos, escrevemos ou “postamos” sem muita preocupação em saber se é verdade
ou mentira.
Quem
sabe, devemos mesmo cultivar uma saudável “dieta do juízo”. Ou a capacidade, na
expressão de Arendt, de “levar a nossa imaginação para visitar os outros”, e
com isso aprendermos a pensar de maneira mais razoável.
*DOUTOR
EM FILOSOFIA PELA UFRGS
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