sábado, 3 de agosto de 2013


4 de agosto de 2013 | N° 17512
ARTIGOS - Fernando Luis Schüler*

O Eichmann nosso de cada dia

O julgamento de Albert Eichmann, em Jerusalém, em 1961, voltou ao debate em função do filme de Margarethe Von Trotta, Hannah Arendt. O filme se concentra na figura de Arendt e sua altivez intelectual. Ela vai até Jerusalém para cobrir o julgamento para a revista The New Yorker. Suas conclusões são conhecidas: não havia um monstro por trás de um crime monstruoso. Havia apenas uma pessoa assustadoramente comum, argumentando perfeitamente sobre a impessoalidade de seus atos.

Em um dado momento do processo, Eichmann arrisca um lance filosófico, definindo-se como alguém que sempre viveu segundo a concepção kantiana do dever. Arendt percebeu a inversão. A moralidade kantiana não nos pede a obediência cega, mas o uso da nossa capacidade de julgar. Julgar com autonomia, imparcialidade, buscando a “ação conforme a regra” que definimos imaginando ocupar, reciprocamente, a posição de qualquer pessoa.

Eichmann não estava preocupado com nada disso. Sua interpretação muito particular da regra kantiana o mandava simplesmente obedecer ao Estado e fazer um bom trabalho. A Alemanha estava em guerra, e a guerra tinha dessas coisas. Havia o Führer, sabia-se quem eram os inimigos e havia um método de fazer as coisas. Do outro lado da guerra, também havia muita gente obedecendo cegamente ao Estado.

O coronel Paul Tibbets, por exemplo, que na manhã de 6 de agosto de 1945, no comando do Enola Gay, apertou o botão que disparou a bomba que iria, segundos depois, exterminar a vida de 90 mil pessoas em Hiroshima. Tibbets viveu até os 92 anos e nunca se disse arrependido. Se fosse sequestrado e levado a julgamento, talvez também dissesse que cumpria ordens, mas não creio que citasse Kant. Ele poderia argumentar que estava do lado certo da guerra, mas tenho dúvidas de que teria feito diferente, ele ou qualquer outro, se houvesse caído, por força do destino, do lado errado.

É tranquilizador pensar que Arendt está tratando de um grande mal, talvez o maior de todos, que foi a barbárie nazista, mas há algo mais perturbador aí. Quem sabe Eichmann agiu em boa-fé, apenas tendo feito um juízo equivocado a respeito do que consistia o seu dever.

Disciplinou sua mente de modo que o sofrimento das pessoas que ele mandava para os campos de concentração não lhe dissesse respeito. Talvez sua adesão subjetiva ao regime tenha sido muito mais profunda do que se dispôs a reconhecer no tribunal. Não importa. A Alemanha, à época, e boa parte da Europa, estava forrada de Eichmanns. Eles se converteram rapidamente em bons cidadãos, logo após a guerra, sem que nada houvesse mudado em sua natureza. A conclusão não é das mais simpáticas: a banalidade mora dentro de nós. Na nossa propensão a fazer a mesma coisa que Eichmann, eventualmente em situações menos dramáticas.

No Brasil, muita gente gostou, e sente saudade, da época em que se fechou o Congresso, os partidos, não fazendo muita questão de saber sobre os centros de tortura, desaparecimentos políticos e coisas assim. Ainda hoje há um partido político, no Brasil, com 13 deputados no Congresso Nacional, que acha bacana lançar uma nota elogiando um dos mais grotescos ditadores da nossa época, o norte-coreano Kim Jong-il. São todos pequenos Eichmanns?

Essas pessoas foram ou são movidas por más intenções, ou simplesmente por um déficit de empatia, ou uma “empatia seletiva” para com o sofrimento humano? Se elas cometem um erro de julgamento, no que ele se diferencia do erro de Eichmann, fora a diferença no tamanho do mal que produzem? A banalidade do mal, afinal de contas, depende da natureza do mal praticado, ou em um tipo de atitude quando formulamos nossos juízos?

O que Arendt nos pede não é pouca coisa: responsabilidade no ato de julgar. Agora que todos têm um smartphone para digitar palavrinhas e julgar o mundo, várias vezes por dia, isso parece fazer especialmente sentido. Julgamos segundo nossas pequenas paixões políticas? Nossos preconceitos? Arrisco dizer que, nesta época em que todos nos tornamos “intelectuais”, o risco maior não é o da obediência ao poder, do fanatismo ou de alguma ameaça totalitária, mas meramente aquilo que o filósofo Harry Frankfurt chamou de bullshit, a besteira mesmo, algo que falamos, escrevemos ou “postamos” sem muita preocupação em saber se é verdade ou mentira.

Quem sabe, devemos mesmo cultivar uma saudável “dieta do juízo”. Ou a capacidade, na expressão de Arendt, de “levar a nossa imaginação para visitar os outros”, e com isso aprendermos a pensar de maneira mais razoável.

*DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UFRGS


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