DANUZA
LEÃO
Terra em transe
De
onde tinham vindo, será que eram da mesma festa? Ninguém sabia, e garanto que
ninguém tinha bebido
Para
quem não sabe: Millôr Fernandes disse uma vez a um amigo que quando morresse não
queria homenagens, mas gostaria muito de ter um banquinho com seu nome no
Arpoador, para que os namorados sentassem e vissem o por do sol. Na tarde
cinzenta da última segunda-feira, o banquinho de Millôr foi inaugurado
oficialmente. Banquinho, em termos: projetado por Jaime Lerner e com o perfil
de Millôr desenhado por Chico Caruso, virou um superbanquinho.
Os
amigos foram chegando aos poucos e se acomodando debaixo de uma grande tenda,
onde cariocamente eram servidos os carioquíssimos mate, água de coco e
biscoitos Globo. Como o Rio é muito animado, uma musiquinha animava a festa,
tocando única e exclusivamente bossa nova.
O
elenco era de primeiríssima: o que havia de mais mais em cada setor, nos
quesitos jornalismo, arquitetura, poesia, artes plásticas, design, música,
boemia, mundo teatral e televisivo, mundo jurídico etc. etc.; e mulheres,
muitas mulheres, como Millôr gostava. Ele era dos poucos homens que tinha
amigas, amigas mesmo --e apenas amigas.
Houve
um momento em que olhei em volta distraidamente e vi, em cima de uma pedra, um
homem exercendo seu duro ofício de estátua viva; nesse dia ele era um verdadeiro
pirata, com colares, brinco em uma orelha só, botas, lenço na cabeça. Perfeito,
ele não se moveu durante todo o tempo do evento, com o qual, aliás, não tinha
nada a ver. Muito curiosa sua presença.
Apesar
da ausência do homenageado --por força das circunstâncias--, estavam todos
alegres, lembrando, contando histórias. E mais gente chegando, mais gente
chegando. Eis que, por detrás das pedras do Arpoador, por detrás do pirata,
aparece um casal de noivos, ela vestida da maneira mais tradicional: branco
longo, véu e grinalda. Foi um toque quase surrealista, assim do nada. Já estava
escurecendo, e eis que do mar começam a surgir homens lindos, que pareciam saídos
de grutas no fundo dos oceanos; em relação com a realidade, apenas as pranchas
de surfe. Detalhe: foi naquele mar que foram jogadas as cinzas de Millôr.
Mas
melhor ainda foi quando se juntaram a esses homens oito ou dez mulatas
deslumbrantes, todas vestidas --despidas, aliás-- como destaques de escola de
samba, cada uma com o biquíni de uma cor, penas na cabeça, e de repente começaram
a dançar, na areia, com os homens saídos do mar. De onde tinham vindo, será que
eram da mesma festa? Ninguém sabia, e garanto que ninguém tinha bebido, foi
tudo verdade.
Mas
nossa festa era outra, e eis que Fernanda Montenegro, convidada a ler um texto
do próprio Millôr, foi chamada pelo título "a grande dama do teatro
brasileiro". Ela deu uma risada marota --pela originalidade, talvez;
grande Fernanda.
Depois
dela falou Helio, irmão de Millôr, com seus juvenis 92 anos, e, como não podia
deixar de ser, as "otoridades": o sub prefeito da zona sul da cidade,
o responsável pela preservação dos monumentos e, como não podia deixar de ser,
os agradecimentos de praxe às firmas que colaboraram com o cimento, a tinta e não
sei mais o quê para que o banquinho virasse uma realidade etc. e tal.
O
mais incrível de tudo: todos viram tudo que eu vi e estou contando, e ninguém
nem falou sobre o assunto, achando tudo absolutamente normal, grande Rio de
Janeiro.
Cena
de Fellini? Melhor ainda: de Glauber. Só faltou mesmo Paulo Autran, para que se
visse, ao vivo e em cores, uma nova versão de "Terra em Transe" 2013.
Uma
tarde absolutamente inesquecível.
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