domingo, 2 de junho de 2013

DANUZA LEÃO

Terra em transe

De onde tinham vindo, será que eram da mesma festa? Ninguém sabia, e garanto que ninguém tinha bebido

Para quem não sabe: Millôr Fernandes disse uma vez a um amigo que quando morresse não queria homenagens, mas gostaria muito de ter um banquinho com seu nome no Arpoador, para que os namorados sentassem e vissem o por do sol. Na tarde cinzenta da última segunda-feira, o banquinho de Millôr foi inaugurado oficialmente. Banquinho, em termos: projetado por Jaime Lerner e com o perfil de Millôr desenhado por Chico Caruso, virou um superbanquinho.

Os amigos foram chegando aos poucos e se acomodando debaixo de uma grande tenda, onde cariocamente eram servidos os carioquíssimos mate, água de coco e biscoitos Globo. Como o Rio é muito animado, uma musiquinha animava a festa, tocando única e exclusivamente bossa nova.

O elenco era de primeiríssima: o que havia de mais mais em cada setor, nos quesitos jornalismo, arquitetura, poesia, artes plásticas, design, música, boemia, mundo teatral e televisivo, mundo jurídico etc. etc.; e mulheres, muitas mulheres, como Millôr gostava. Ele era dos poucos homens que tinha amigas, amigas mesmo --e apenas amigas.

Houve um momento em que olhei em volta distraidamente e vi, em cima de uma pedra, um homem exercendo seu duro ofício de estátua viva; nesse dia ele era um verdadeiro pirata, com colares, brinco em uma orelha só, botas, lenço na cabeça. Perfeito, ele não se moveu durante todo o tempo do evento, com o qual, aliás, não tinha nada a ver. Muito curiosa sua presença.

Apesar da ausência do homenageado --por força das circunstâncias--, estavam todos alegres, lembrando, contando histórias. E mais gente chegando, mais gente chegando. Eis que, por detrás das pedras do Arpoador, por detrás do pirata, aparece um casal de noivos, ela vestida da maneira mais tradicional: branco longo, véu e grinalda. Foi um toque quase surrealista, assim do nada. Já estava escurecendo, e eis que do mar começam a surgir homens lindos, que pareciam saídos de grutas no fundo dos oceanos; em relação com a realidade, apenas as pranchas de surfe. Detalhe: foi naquele mar que foram jogadas as cinzas de Millôr.

Mas melhor ainda foi quando se juntaram a esses homens oito ou dez mulatas deslumbrantes, todas vestidas --despidas, aliás-- como destaques de escola de samba, cada uma com o biquíni de uma cor, penas na cabeça, e de repente começaram a dançar, na areia, com os homens saídos do mar. De onde tinham vindo, será que eram da mesma festa? Ninguém sabia, e garanto que ninguém tinha bebido, foi tudo verdade.

Mas nossa festa era outra, e eis que Fernanda Montenegro, convidada a ler um texto do próprio Millôr, foi chamada pelo título "a grande dama do teatro brasileiro". Ela deu uma risada marota --pela originalidade, talvez; grande Fernanda.

Depois dela falou Helio, irmão de Millôr, com seus juvenis 92 anos, e, como não podia deixar de ser, as "otoridades": o sub prefeito da zona sul da cidade, o responsável pela preservação dos monumentos e, como não podia deixar de ser, os agradecimentos de praxe às firmas que colaboraram com o cimento, a tinta e não sei mais o quê para que o banquinho virasse uma realidade etc. e tal.

O mais incrível de tudo: todos viram tudo que eu vi e estou contando, e ninguém nem falou sobre o assunto, achando tudo absolutamente normal, grande Rio de Janeiro.

Cena de Fellini? Melhor ainda: de Glauber. Só faltou mesmo Paulo Autran, para que se visse, ao vivo e em cores, uma nova versão de "Terra em Transe" 2013.


Uma tarde absolutamente inesquecível.

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