10
de junho de 2013 | N° 17458
L.F.
VERISSIMO
Texto e
contexto
Na
peça “Ricardo II” de Shakespeare há uma fala famosa que é muito citada como um
hino patriótico à Inglaterra. Quem a diz é o duque John de Gount, tio do rei
Ricardo II e pai de Henry Bolingbroke, desafeto exilado do rei, que acabará
derrubando do trono.
John
de Gount, à beira da morte, exalta as riquezas e as glórias do seu país (“este
outro Éden”, “esta pedra preciosa posta no mar prateado” a salvo “da inveja de
terras menos felizes”, “este lote abençoado, este chão, este reino, esta
Inglaterra” ) num tom de entusiasmo crescente que empolga até quem não é inglês
– se lido até a metade.
O
resto da fala, raramente citada, é um lamento pelo declínio desta maravilha,
cuja grandeza o rei está dilapidando. “Esta Inglaterra acostumada a conquistar,
hoje é vergonhosamente derrotada por si mesma”, diz Gount, que termina desejando
que “o escândalo desapareça junto com a minha vida, alegrando minha morte
iminente”.
Já
contei (umas cem vezes) que vi o Millôr Fernandes levantar uma plateia num
encontro literário em Passo Fundo com a leitura de um texto de candente defesa
da democracia e dos direitos humanos, e depois da ovação revelar que acabara de
ler o discurso de posse do general Médici na Presidência da República, quando
se inaugurava o período mais escuro da ditadura. Um período em que com
frequência o discurso do poder contrastava com a realidade à sua volta e o
texto era desmentido pelo contexto.
A
aula do Millôr foi sobre a força autônoma da retórica, capaz de mobilizar uma
multidão que ignora seu contexto. Mas pior do que isto é quando o contexto é
conhecido e mesmo assim as palavras compõem outra realidade, e empolgam e
mobilizam do mesmo jeito. A história brasileira está cheia de exemplos do
triunfo da oratória bacharelista sobre a realidade do momento, do dito sem a
menor relação com o feito.
Para
ser justo com o Médici e o autor do seu discurso, é preciso reconhecer que em
todo discurso de posse presidencial há um desencontro parecido entre intenção e
realidade. Quem não se lembra do discurso de posse do Collor?
Shakespeare
tem outros exemplos de textos em que uma parte se vira contra a outra, como a
exaltação que vira lamento de John de Gount. O mais notório é a fala de Marco
Antônio sobre o corpo de César assassinado, que começa dando razão aos
assassinos e termina incitando a massa a matá-los. Em outro trecho da peça
alguém diz que se deve ter muito, mas muito cuidado com os bons oradores.
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