07
de junho de 2013 | N° 17455
DAVID
COIMBRA
Nietzsche e o cavalo de
Turim
Uma
manhã de inverno, ao sair de casa, em Turim, Nietzsche viu um camponês
espancando seu cavalo numa piazza da cidade. Compadecido, o filósofo atirou-se
sobre o homem, arrancou-lhe o chicote das mãos e o expulsou aos gritos.
Em
seguida, dependurou-se no pescoço do cavalo e pôs-se num choro convulso. Transeuntes
acudiram-no quando desmaiou de emoção. Levado de volta para seu quarto,
Nietzsche acordou depois de alguns minutos e começou a balbuciar frases sem
sentido. Havia enlouquecido. Viveu ainda mais 10 anos e não recuperou a razão.
Esse
episódio do cavalo de Turim é bastante famoso, foi até feito um filme a
respeito. As pessoas se espantavam: que força comportou aquela cena, capaz de
dissolver a sanidade de um dos maiores filósofos de todos os tempos.
A
verdade é que Nietzsche já vinha apresentando sinais de demência. Na véspera do
dia do colapso, a senhoria do seu apartamento em Turim ouviu ruídos estranhos
vindos do quarto que ele habitava. Foi investigar e, abelhuda como toda
senhoria, resolveu espiar pelo buraco da fechadura. Espantadíssima, viu Nietzsche
dançando nu.
Antes
disso, o filósofo lançou um de seus últimos livros, Ecce Homo, com capítulos
encimados por títulos como: “Por que sou tão sábio”, “Por que sou tão
inteligente” e “Por que escrevo tão bons livros”.
Era
a loucura que lhe galopava cérebro adentro.
Mesmo
assim, mesmo estando ele a enlouquecer progressivamente, não se pode subestimar
o poder da cena do espancamento do cavalo de Turim. Houve algo ali que foi tão
comovente, que tocou com tal profundidade a alma de Nietzsche, a ponto de abrir
em sua mente as comportas para a torrente da loucura. É assombroso, porque se
trata de Nietzsche, o filósofo inclemente do Além-do-Homem, que escreveu em
Assim Falou Zaratustra:
“Onde
se fizeram mais loucuras na Terra do que entre os compassivos, e que foi que
mais causou prejuízos à Terra do que a loucura dos compassivos? Pobres dos que
amam sem estar acima da sua piedade! (...) Livrai-vos, pois, da sua piedade!”.
Nietzsche
pregava aos homens que se livrassem da sua piedade e ele próprio enlouqueceu de
piedade.
Por
causa de um cavalo, não de um homem.
Agora,
revendo os relatos das torturas sofridas pelas vítimas do regime militar, gente
que foi seviciada com selvageria, que apanhou até morrer, lendo esses relatos
levantados pela Comissão da Verdade, fico pensando nos homens que assistiam a
essas sessões de barbárie.
Como
conseguiam? Como não se deixavam tocar ao testemunhar moças e rapazes sofrendo
nas mãos de carrascos? Não tinham compaixão, não tinham piedade, não tinham,
portanto, humanidade. Ou enlouqueceriam de horror, como um dia o filósofo
enlouqueceu.
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