sábado, 1 de junho de 2013


01 de junho de 2013 | N° 17450
CLÁUDIA LAITANO

O sermão do médico

A discussão sobre o aborto é uma gigantesca placa tectônica sobre a qual o Brasil repousa como se fosse esplêndido – e não instável e mal resolvido – o berço de alheamento em que estamos precariamente assentados.

Todos sabem que o problema está lá: uma legislação perversa que, na prática, oferece o olhar condescendente às mulheres com dinheiro e a dureza da lei para quem não tem. Os números gritam. Estima-se que no mundo todo são realizados 46 milhões de abortos por ano, 20 milhões de forma clandestina – em países como Haiti, Somália e Iraque, para citar apenas alguns dos que preferem proibir a discutir o problema. No Brasil, as estimativas chegam a 1,2 milhão de abortamentos/ano.

Ainda assim, fala-se muito pouco sobre o assunto por aqui. Políticos, em geral, não querem nem saber do debate – a não ser perto de eleição, quando candidatos ligados a grupos religiosos aproveitam-se da ocasião para pressionar adversários a se posicionar, o que, em vez de enriquecer a discussão, costuma rebaixá-la ainda mais.

Nós, brasileiros favoráveis à revisão da legislação sobre o aborto, estamos relativamente acostumados ao silêncio cínico, interrompido aqui e ali por vozes isoladas como a do médico Drauzio Varella (“Não há princípios morais ou filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de família de baixa renda no Brasil”), que trata o assunto como uma questão de saúde pública que não pode ser varrida para baixo do tapete. O resto é (quase sempre) silêncio.

E quando nada parecia pior do que ignorar o assunto, eis que a novela Amor à Vida (o título não era tão anódino quanto se imaginava, afinal) mostra que tratar o tema de forma rasa e moralista pode ser um desserviço maior ainda. Em capítulo exibido esta semana, o médico interpretado por Antonio Fagundes trai a ciência, o bom senso e o dever profissional aproveitando uma consulta para dar um banho de moral e pregação religiosa na pobre paciente que o procurou para pedir ajuda diante de uma gravidez indesejada.

É compreensível que um médico se recuse a realizar um procedimento ilegal. É compreensível que esse médico seja contra o aborto por convicções íntimas. O que não é admissível, nem na novela das oito, é um médico dar um sermão em uma paciente. Sem contraponto ou chance de debate, a posição contrária ao aborto foi jogada na cara do espectador. Como um tijolo.

Para quem acredita que é impossível falar sobre esse assunto na TV, o desmentido pode estar logo ali, alguns canais adiante. O Canal Viva está exibindo aos sábados, desde o início de maio, a reprise do seriado Malu Mulher, que, entre outros temas polêmicos ainda atuais, tratou o aborto de forma espantosamente aberta e sem preconceitos. Em 1979. Em pleno governo Figueiredo. No horário nobre da Globo.


O episódio Ainda Não É Hora, com a jovem Lucélia Santos contracenando com Regina Duarte, está disponível no DVD da série. Recomendo fortemente aos mais jovens, que não assistiram na época, e também aos mais velhos, que, como eu, mal conseguem acreditar que, em condições tão adversas, pudesse se produzir no Brasil algo tão lúcido e arejado quanto Malu Mulher.

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