MARCELO COELHO
A volta de
Sherlock Holmes
Nas histórias do detetive, mesmo quem o visse pela primeira
vez saberia estar diante de uma exceção
O QUE há dentro do computador? Pouca coisa, em comparação
com as cidades desabitadas e caprichosas que dormiam dentro de cada rádio de
válvulas. Quem se decepcionou com Robert Downey Jr. no papel de Sherlock Holmes
pode, agora, vingar-se em grande estilo.
Uma série da BBC, com o detetive bem menos ligado em caratê
e geringonças tecnológicas, está sendo lançada no Brasil. Em matéria de
Sherlock Holmes, sou um comentarista dos mais suspeitos. Menino sedentário e
fracote, o que me encantava nos seus livros era o fato de que as proezas mais
espantosas, "sobrenaturais" mesmo, pudessem realizar-se pelo puro
intelecto.
Com vantagem de que Holmes não precisava ser um tipo tão
ridículo e desprovido de charme quanto o Hercule Poirot de Agatha Christie. No
caso do detetive belga, a natureza se vingava de sua inteligência, fazendo-o
gordinho e com sotaque.
Já nas histórias de Sherlock Holmes, mesmo quem o visse pela
primeira vez saberia estar diante de uma figura de exceção. Criando um tipo
notável pela magreza, pelo nariz afilado e pela indiferença perante o curso
usual do mundo, Conan Doyle imaginava características "a favor" do
personagem.
Agatha Christie não fazia mais que sabotar, pela aparência
infeliz, o prestígio de Poirot. Por isso concordo com a opinião geral: Robert
Downey Jr., em "Jogo de Sombras", pode ser qualquer coisa, mas não
"é" Sherlock Holmes. Lembra mais o personagem de um antigo seriado,
"James West".
O personagem, situado aí por 1890, era um janota agilíssimo.
Com seu auxiliar Artemus Gordon (este sim, uma perfeita cópia de Watson),
cruzava as planícies do faroeste num trenzinho ultraequipado. Usava e abusava
de aparelhinhos portáteis e de lindas coristas de saloon, como desenvoltura
digna de 007.
Esse seriado bem que poderia ressuscitar. Está na moda, com
efeito, uma espécie de "ficção científica ao contrário". É o caso de
"Hugo Cabret" e dos dois filmes de Sherlock Holmes com Downey Jr.
Projetam-se, para um passado mais ou menos distante, os
feitos da tecnologia contemporânea. Robôs, cápsulas e armas em miniatura
funcionam maravilhosamente. Mas também exibem, ao contrário do que acontece
hoje, suas entranhas, suas válvulas e roscas denteadas. Celebra-se o mundo da
mecânica, e não o da eletrônica, que é mais invisível e desinteressante.
Também entramos "dentro" do cérebro de Sherlock
Holmes em "Jogo de Sombras". No filme, os movimentos de luta marcial
se antecipam diante dos nossos olhos, como se fosse possível prever, como num
jogo de xadrez, as reações do inimigo.
O efeito é apenas coreográfico. Claro, boas deduções existem
também ali, mas são quase uma pílula amarga que o diretor tem de dourar com
efeitos de câmera para que o público possa aceitá-las.
Vibrei mais com os três primeiros DVDs da série britânica.
Para começar, o Sherlock tem cara de Sherlock -magro até a esquisitice,
inteligente até o insultuoso. A série da BBC não perde tempo com as piadinhas
ultrapassadas sobre a possível atração homossexual entre o Sherlock de Downey
Jr. e o Watson de Jude Law.
Dá o assunto meio por favas contadas, menos porque role um
clima entre os dois, e mais porque Benedict Cumberbatch, no papel de Sherlock,
tem o rosto anguloso e imberbe de um adolescente -e não se importa
absolutamente com nada do que pensem a seu respeito.
Ele é de uma antipatia sem paralelo. "Fique quieto
agora, Watson", diz ele. "Mas eu não estou falando nada",
responde o companheiro. "Está pensando", responde Holmes, "e
isso me perturba".
A série se passa na Londres atual -celulares e o Google
ajudam Holmes em suas pesquisas. Não temos o cenário vitoriano de "Jogo de
Sombras" nem as calçadas brilhando de chuva e os edifícios sujos dos
clássicos sherlockianos da década de 1940, com Basil Rathbone.
Aliás, estão em DVD também e ainda hoje são
"assistíveis", pelo enredo enrolado e pela eletricidade incomparável
do ator principal.
Não importa muito o tempo em que se passam as histórias. Na
cidade de cem anos atrás ou no cenário hiperluminoso e transparente de hoje,
Holmes sobrevive. Como Sócrates ou Descartes, é um dos raros heróis da razão
pura, exemplar bizarro de uma espécie mais violenta e sentimental que ele.
coelhofsp@uol.com.br
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