sexta-feira, 20 de dezembro de 2024


19 de Dezembro de 2024
CARPINEJAR

Quem vem mais?

Uma noite, eu fiz jantar para a minha mãe. Assei um cordeiro com alecrim, banhado em vinho tinto.

Ela entrou no meu apartamento, e estranhou aquela mesa posta, o sousplat, a porcelana pintada dos pratos, os talheres chiques, os guardanapos de pano, os cálices brilhando, os arranjos de flores, as luminárias no tom certo entre a claridade e a sombra, numa penumbra convidativa.

Minha mãe perguntou, intrigada: - Quem vem mais? Eu respondi: - Você. É para você. Ela retrucou: - Para mim? Não precisava de tudo isso. Podíamos comer no sofá.

Eu insisti: - Não, mãezinha, você merece. 

E ela desandou a chorar. Porque, em seus 85 anos, nunca ninguém tinha arrumado uma mesa para ela. Já tinham cozinhado para ela, mas acompanhada de mais pessoas: uma entre tantas bocas, um entre vários olhares.

Agora não, agora se via única. Não competia com nenhuma distração ou tarefa. Ela jamais tinha experimentado a exclusividade, o luxo de se bastar, a sensação da completude, a oferta de um banquete privativo.

Na cabeceira do largo móvel, permaneceu a maior parte da refeição calada. Mas não era um silêncio triste, obediente; era um silêncio que eu caracterizaria de altivo, elegante, já povoado de saudade, já sentindo saudade daquele momento antes mesmo que ele acabasse.

Quando ofereci a sobremesa, ela quis dividir, eu recusei. A porção não admitia partilha. Expliquei que nem sempre o individualismo é egoísmo, às vezes é amor-próprio.

Ela foi afundando a colherzinha na musse de maracujá como se estivesse encontrando um outro lado da esperança, cavando seu poço particular. E desandou a rir. Porque, em seus 85 anos, não havia saboreado o privilégio de ser servida.

Ela, que criou quatro filhos, que colocou os quatro filhos numa universidade, que trabalhou em dois empregos simultaneamente, que acumulou plantões de madrugada, que acordava cedo para preparar o almoço enquanto tomávamos café. 

Ela, que dedicou o seu tempo para nós, a sua paciência, solucionando os problemas como uma cigarra e fechando o orçamento como uma formiguinha, recebia uma pequena devolução do suor e das lágrimas, do sal da vida. Provava o açúcar da atenção, o mel do melhor, sem se preocupar com a reposição, com o forno ligado, com a louça suja, com a desordem das panelas, com os panos de prato imundos e os farelos e manchas pelo ambiente.

Era uma visita. Felicidade é poder ser visita, ser tratada como visita, por alguns instantes, pela sua própria família. Ser cuidada por quem a conhece como se não a conhecesse. É ter o maravilhamento da curiosidade apesar de tanta memória compartilhada.

Não deixei que ela abrisse a porta - para assim voltar. Tirei a sua mão da maçaneta pondo gentilmente a minha mão sobre a dela. O apogeu do afeto surge da simplicidade, quando você capricha para uma só pessoa. Quando você realiza uma festa para uma só alma.

As cadeiras vazias não serão ausências, e sim merecimento. 

CARPINEJAR

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