segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

O advogado Leonardo Lamachia, reeleito para presidir a Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB/RS), com 76,9% dos votos válidos, inicia o próximo mandato a partir de 1º de janeiro, com duração de um triênio (2025-2027). 

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Lamachia detalha futuros planos da OAB/RS relacionados ao uso de Inteligência Artificial (IA) na área da advocacia, tanto em termos

de regulação da ferramenta quanto dos limites da tecnologia, assim como o uso dela para combater a morosidade de processos, por exemplo, com a criação do Observatório da Prestação Jurisdicional. 

O advogado relata as dificuldades do setor e descreve uma atual crise do segmento com excesso de contingente no mercado de trabalho e empobrecimento da profissão. Lamachia comenta também sobre a perda do espaço das prerrogativas da classe, como a supressão da sustentação oral nos tribunais. 

Além disso, o presidente da OAB do Rio Grande do Sul também faz críticas às decisões monocráticas dos tribunais que, segundo ele, são por vezes tomadas por relator fora do rol de possibilidades, violando decisões e desrespeitando o devido processo legal. No mesmo sentido, cita decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) dentro do âmbito do inquérito das Fake News, apelidado de inquérito do Fim do Mundo.

Jornal do Comércio - Quais serão as medidas executadas para combater a morosidade no Poder Judiciário?

Leonardo Lamachia - Continuaremos lutando por elevação de entrância, para melhorar a prestação jurisdicional, e pela nomeação de mais juízes, porque ainda temos um déficit de magistrados no Estado. Não são todas as comarcas e varas que têm juiz titular. Isso é uma outra causa da morosidade. E vamos criar o Observatório da Prestação Jurisdicional, com o uso de Inteligência Artificial e obtendo dados do poder judiciário. Nós queremos poder ter indicadores objetivos que digam qual é a vara que mais demora, qual é a comarca com mais problemas e um número maior de processos. Então tentaremos entender as causas da morosidade, porque às vezes há uma vara com um número muito expressivo de processos, mas ela é mais ágil porque ali há dois ou três juízes. 

Em contrapartida, pode haver outra com um número menor de processos e com uma complexidade maior, e há menos magistrados e servidores, resultando em mais demora. A ideia do observatório, portanto, é trabalhar com indicadores. Utilizar mecanismos tecnológicos que nos ajudem a identificar os principais problemas de morosidade e, junto ao Poder Judiciário e ao tribunal, seja ele de Justiça, do Trabalho ou o Regional Federal, atuar objetivamente em cima das causas. Tivemos também aqui, no processo da pandemia, uma demora exagerada para a reabertura dos fóruns, e a nossa realidade no Rio Grande era diferente dos outros estados, porque aqui os processos eram físicos, nos outros Estados já estavam digitalizados. Foram quase dois anos para esses 2,5 milhões de processos começarem a tramitar e andar. Isso impôs uma crise para a advocacia gaúcha.

JC - Acerca da Inteligência Artificial no Direito. Pode-se esperar, daqui a alguns anos, por parte da OAB/RS, algum tipo de regulação sobre o uso?

Lamachia - Criamos o primeiro grupo de trabalho para debater o uso ético da Inteligência Artificial, porque diferentemente da Europa, não há, ainda, uma lei regulamentando o uso dela. Há um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional. Fizemos uma reunião junto ao presidente do Tribunal de Justiça, do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) e do TRF (Tribunal Regional Federal), além do procurador-geral de Justiça, o defensor público-geral e a OAB. Todos integrantes do sistema de Justiça estavam aqui. A ideia é ter um protocolo de uso ético, enquanto não há uma legislação regulamentando a matéria. Tanto para advogadas e advogados, quanto para magistrados, membros do Ministério Público e defensores.

JC - E já há previsão de quais diretrizes vão estar nesses protocolos?

Lamachia - Uma das diretrizes é que nós queremos que conste em qualquer decisão judicial e qualquer documento público que tenha usado Inteligência Artificial, de forma expressa neste documento, o uso da ferramenta. Mais ou menos como é feito hoje nas embalagens de produtos que dizem "contém glúten". Um outro parâmetro, objetivo ou diretriz para este documento é que as decisões judiciais não podem ser produzidas por Inteligência Artificial. O nosso entendimento é que é uma ferramenta importante que pode contribuir para dar celeridade para os processos, e que pode ajudar a todos os operadores do Direito, mas que não pode substituir o ato humano. E o ato de julgar é um ato eminentemente humanista.

JC - O senhor havia comentado sobre a questão da elevação de entrâncias. Pode detalhar?

Lamachia - Hoje, no estado do Rio Grande do Sul, há três entrâncias, as iniciais, a intermediárias e a finais. Isso é uma classificação que o Tribunal de Justiça faz em relação àquela comarca. Se a comarca é de entrância inicial, ela tem uma infraestrutura pra funcionar, de acordo com o tamanho do município, com a economia daquele local e com o número de processos. Outras comarcas são classificadas em entrância intermediária, porque já são municípios de um porte maior, vão ter outra infraestrutura no Fórum. Comarcas de entrância final são aquelas nas cidades maiores e contam com outra infraestrutura, em termos de número de servidores e de juízes. 

Então é uma classificação que o tribunal adota para que ele possa amplificar a estrutura naquela localidade. E também tem relação com o critério de promoção dos juízes. Eles conseguem se aposentar na entrância final. Às vezes, em determinadas comarcas que não são a entrância final, o juiz já está lá há muito tempo, já está acostumado com a comunidade e faz um bom trabalho, mas para que ele possa se aposentar, ele deve sair daquele município, porque aquele município não é a entrância final. Então, a elevação de entrâncias, em especial as finais, promove uma estabilização da prestação jurisdicional.

JC - O senhor disse que a advocacia passa por um momento de dificuldade e restrição ao exercício profissional. Que cenário é esse?

Lamachia - São duas coisas distintas. Não há nenhuma dúvida de que nós estamos vivendo uma crise na advocacia. Há 1,9 mil cursos de Direito e quase 1,5 milhão de advogados. Evidentemente que houve um empobrecimento da profissão ao longo dos anos, em razão do número excessivo de cursos, de muita gente no mercado, com exame de ordem mesmo com má formação. Muitos desses cursos são ruins, e alguns deles são de baixíssima qualidade, e ainda assim o sujeito consegue passar no exame da ordem. Evidentemente que o empobrecimento da advocacia não é culpa da OAB. É uma série de fatores. Quanto às restrições ao exercício profissional e dificuldades de outras naturezas temos, por exemplo, o caso da sustentação oral. O STF começou tendência de restringir o direito de sustentação oral e criou uma ferramenta chamada plenário virtual. 

Quando vou ao tribunal e peço para usar da palavra, é em nome do constituinte, que me outorgou uma procuração. O plenário virtual impõe a gravação de um vídeo, em vez de fazer a defesa oral e a sustentação oral, presencial ou tele presencial. Nós somos a favor dos dois modelos. Porém, em formato tele presencial, farei a sustentação oral e verei o debate entre os procuradores. Se houver algum equívoco na condução do julgamento, eu tenho a oportunidade de produzir algum esclarecimento. O vídeo gravado não me produz isso. O plenário virtual é uma ferramenta importante para ajudar a desafogar o Poder Judiciário, desde que seja opção da parte e do seu advogado. Os julgamentos se pautam pelo princípio da publicidade e da transparência. Isso está na Constituição Federal. 

O relator deve obrigatoriamente deferir. E o que o Supremo está fazendo, e o Conselho Nacional de Justiça também fez, é tomar uma decisão que classifico como desastrosa, e a Ordem repercutiu, de que o CNJ diz que a decisão de manter ou retirar do plenário virtual é do relator. Nós não aceitamos. É um exemplo claro de restrição ao exercício profissional. Outro ponto é que alguns tribunais estão abusando de decisões monocráticas, também numa esteira de mau exemplo do Supremo Tribunal Federal. Decisão monocrática é a decisão do relator. A lei processual te dá um rol de possibilidade para decidir monocraticamente. Nós estamos acompanhando decisões monocráticas fora deste rol. Isso é uma violação ao devido processo legal.

JC - Conseguiria dar algum exemplo de decisões fora desse rol?

Lamachia - Da 7ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça, que uma câmara de Direito de Família, uma área na qual há farta matéria fática e o debate é muito em torno dessa área, que não é matéria de Direito. Diz respeito a se algum abuso acontece ou não, se a mãe tem condições ou não de dar atenção e educação. São questões que desafiam análise de fato, de prova testemunhal, prova documental e não uma discussão meramente de Direito, ou se algum artigo é constitucional ou não. Na nossa avaliação é um abuso o uso da decisão monocrática, porque ali é a oportunidade que o advogado tem de fazer uma sustentação oral e oportunizar aos três julgadores que decidam aquilo, porque são questões sensíveis. E nós temos acompanhado e temos atuado junto ao tribunal, pedido providências em relação à 7ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça. Ela abusa de decisões monocráticas.

JC - O senhor chegou a dizer ao JC, em entrevista anterior, que a entidade deve se posicionar sobre temas de impacto social, desde que envolvam questões jurídicas. E recentemente houve o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e mais de 30 pessoas, entre políticos eleitos e oficiais de alto escalão das Forças Armadas. Como a OAB se posiciona nesse caso?

Lamachia - Deve se posicionar de forma isenta, apartidária, longe das paixões ideológicas, tendo como norte a Constituição Federal. Esse é o primeiro requisito de posicionamento de uma instituição como a OAB. Ultrapassada essa preliminar, e entrando no mérito do tema, digo com muita tranquilidade e com muito orgulho, que, desde 2022, tenho feito uma defesa integral da democracia. Dizer não a qualquer espécie de golpe, de tentativa de implantação de ditadura, de rompimento da Constituição, é dizer que se houve esse tipo de tentativa e isso caracterizou a prática de um crime, as pessoas que fizeram devem ser punidas na forma da lei, depois de uma investigação, do devido processo legal e da ampla defesa. Mas, se fizeram isso, devem ser punidas. 

Ainda, ao mesmo tempo que condenamos com muita clareza e veemência, também denunciamos com veemência os excessos praticados pelo Supremo Tribunal Federal em algumas decisões, não generalizando, que violam o devido processo legal. Um exemplo é o Inquérito do Fim do Mundo (anteriormente batizado como Inquérito das Fake News). Um inquérito que não termina e que o relator e presidente do inquérito (Alexandre de Moraes) é vítima, juiz e, em algumas decisões, não observou a denúncia do Ministério Público e, portanto, também fez às vezes de acusador. Isso é uma violação ao devido processo legal gravíssima. E quando a Suprema Corte realiza essa violação também atenta contra o Estado Democrático de Direito e contra a democracia. Porque a Suprema Corte é o farol do Poder Judiciário brasileiro.

Perfil

Leonardo Lamachia (Porto Alegre, 1975) é advogado formado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs) em 1999, sócio da Lamachia Advogados Associados e presidente da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasl (OAB-RS) na gestão 2022/2024, agora reeleito para mais um mandato à frente da instituição. Tem especialização em Direito Empresarial com ênfase em Direito Constitucional e Empresarial. Possui atuação em sustentações orais nos tribunais do RS, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Foi vice-presidente do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (Iargs) nas gestões entre 2013 e 2021. É Presidente do Fórum dos Conselhos Regionais e Ordens das Profissões Regulamentadas do RS. É Catedrático de Direito Societário do Centro Miguel Reale - ABF desde 2015, além de Irmão Mesário Efetivo da Mesa Administrativa da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.


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