Chorando o leite derramado
Na minha infância, comprávamos o leite em sacos nos armazéns. Ele durava menos, tínhamos que consumi-lo dentro de dois dias. Meus pais experimentaram também o leite na garrafa de vidro, distribuído em portas. Parecia mais puro, direto da vaca.
Quando ele talhava, ainda assim adoçava a semana com o surgimento da ambrosia de sobremesa. Representava nossa tradição na véspera de ir para a escola. O precioso líquido branco era posto na leiteira para ser fervido. Não contávamos com micro-ondas.
Quando a minha mãe me escalava para cuidar do fogo, eu sabia que teria que limpar o fogão. Um fato dependia do outro. Não existia chance de tirar o leite antes que fervesse e transbordasse.
Eu permanecia por 10 minutos olhando fixamente para a leiteira que aquecia, sem piscar, sem pestanejar, focado, concentrado, mas era virar um pouco o rosto para o lado, na hora de cumprimentar um irmão que despertava, e o leite subia e emporcalhava tudo. As bocas recebiam uma espécie de cola, que lambuzava as suas reentrâncias de forma implacável. Para arear, eu levava o dobro do tempo dedicado à inútil vigilância.
Sempre acreditei que as leiteiras desfrutavam de um sensor facial. Bastava desviar a atenção por um segundo que o pior acontecia.
A fervura se fazia lenta, mas o ponto de ebulição se mostrava absolutamente rápido e vertiginoso, sem dar margem para girar o botão e apagar a chama. Nessa época, havia uma simplicidade mágica em torno dessa bebida matinal, um culto à sua proteína, um contato maior com os fornecedores, um esclarecimento da sua origem.
O leite tinha o gosto óbvio de leite. Eu me lembro disso com tristeza, com uma nostalgia magoada, porque um dos elementos sagrados do nosso dia a dia, fundamental como o pão e o café coado, tem sido profanado.
O Ministério Público (MP) descobriu mais um ardiloso esquema de fraude e adulteração no leite com soda cáustica e água oxigenada. Imagine: soda cáustica e água oxigenada na composição do produto?
Não foram postos ali por acidente, mas de modo premeditado, já que servem para camuflar o leite azedo que deveria ser descartado.
Trata-se da 13ª etapa da Operação Leite Compen$ado, há mais de uma década desmascarando casos pavorosos. A nova blitz, realizada na manhã de quarta-feira, teve como alvo principal uma empresa de Taquara, no Vale do Paranhana. Cinco pessoas acabaram presas.
A empresa suspeita possuía uma lista privilegiada de clientes, entregava lotes para as prefeituras de Alvorada, de Ivoti, de Taquara, de Gravataí, de Viamão, de Porto Alegre e de São Paulo.
Como a qualidade de um produto tão decisivo em nossa rotina não foi devidamente examinada nos contratos de licitação? Quantas vidas inocentes, famílias desavisadas, foram postas em perigo?
A marca chegava a ostentar autorização para exportar à Venezuela.
Se o leite antes sujava o fogão, hoje está mais próximo do detergente e limpa o fogão. E contamina os usuários. _
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