terça-feira, 3 de setembro de 2013


03 de setembro de 2013 | N° 17542
DAVID COIMBRA

Há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que darei na tua boca

Stálin usava bigode. Kamenev também usava bigode. Quase todos aqueles revolucionários bolcheviques usavam bigode. Eram homens duros, curtidos pela vodca e pelo frio de 40 graus abaixo de zero da tundra russa. E, no entanto, encontrei a seguinte passagem de uma carta de Lev Kamenev para Josef Stálin, escrita antes da Revolução de 17. Kamenev estando em Genebra, Stálin na Cracóvia:

“Beijo-te no nariz à moda esquimó. Aborreço-me diabolicamente sem ti. Aborreço-me de morte, juro-te. Não tenho ninguém, não tenho ninguém com quem tagarelar de coração aberto”.

Fiquei pensando em Kamenev e Stálin roçando os narizes batatudos. Não é uma imagem bonita. Em todo caso, suaviza muito o péssimo conceito que tenho de Stálin, um monstro responsável por pelo menos 20 milhões de mortes. Prefiro realmente um Stálin que dá beijo de esquimó num amigo a um Stálin que manda executar o amigo, como ele fez com o próprio Kamenev, nos anos 30.

Também prefiro um jogador que pespega um selinho num amigo, como Emerson, do Corinthians, a tantos outros violentos que há por aí.

O beijo é um carinho cultural. Não existia a palavra “beijo” em nenhuma língua celta, o que significa que eles não se beijavam. Ou seja: Obelix nunca beijou a loirinha Falbalá. Triste.

Os índios brasileiros também não se beijavam. Quando os portugueses aqui chegaram, fizeram o maior sucesso entre as índias exatamente porque as beijavam na boca. Um ponto para os portugueses.

Não sei se os esquimós se beijam roçando os narizes, como Stálin e Kamenev, mas sei que, na língua deles, beijo é o mesmo que cheiro, o que faz muito sentido.

Judas beijou Jesus para traí-lo. Ou seja: os hebreus se beijavam, dois mil anos atrás. E agora mesmo, na Copa de 2010, depois de um jogo bem-sucedido da Argentina, Maradona recebeu cada um de seus jogadores com um beijo, na entrada do vestiário.

Logo, o beijo é um carinho muito comum. Por isso, é estranho que esse beijo do Emerson continue rendendo polêmica, dez dias depois de ter sido desferido, que esse beijo foi desferido, não dado. Ontem, Richarlyson, do Atlético Mineiro, voltou a falar do assunto. Richarlyson, todo mundo sabe, tem fama de gay, mas diz que não é. Se é ou não é, isso não me interessa, o interessante foi o comentário dele a respeito do beijo: Richarlyson disse que admira a coragem do beijoqueiro, embora ele mesmo não fosse capaz de fazer igual. E acrescentou:

– Ele vai se dar mal. O futebol é homofóbico.

Em resumo, Richarlyson considerou o beijo do colega um ato homossexual. Ou homoerótico, como se diz agora. Não seria a opinião de Richarlyson preconceituosa?

O selinho de Emerson não me pareceu um beijo de caráter sexual. No máximo, foi um carinho num amigo, mas acho que nem chegou a tanto. Emerson postou o beijo numa rede social. Queria, portanto, divulgá-lo. Queria a polêmica. Foi um beijo de marketing. Poderia ter sido um beijo romântico, como de um navegador português numa índia brasileira; poderia ter sido um afago amistoso, como o de Kamenev em Stálin.

Mas não. Foi um beijo premeditado. Um beijo como o de Madonna e Britney Spears, sem desejo, sem erotismo, sem nenhum significado, além da intenção de se fazer notar. E, sendo assim, será um beijo corajoso, como disse Richarlyson, um beijo-denúncia, um tapa na hipocrisia machista do futebol? Ou será um beijo meramente promocional?


Espero que seja o beijo ideológico, não o mercadológico. Mas ainda prefiro o autêntico, sexual ou amistoso, pouco importa, desde que haja vontade de beijar e de ser beijado.

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