CLÓVIS
ROSSI
Espíritos nada santos
Impressiona
a intriga por trás do vazamento de documentos pessoais do papa Bento 16
Dias
antes de os cardeais eleitores do novo papa, sucessor de João Paulo 2º, se
trancarem no Vaticano, conversei com um deles, para tentar entender a cabeça
desses votantes absolutamente atípicos.
Habituado
a cobrir campanhas eleitorais mundo afora, da África do Sul à Argentina, de
Israel ao Paraguai, do Brasil ao Reino Unido, viciei-me naturalmente em
constatar nessas ocasiões um bocado de intrigas, previsões, acordos raramente
limpos, ambições raramente contidas -enfim, todo o universo em que nos movemos
os mortais comuns.
Esperava
algo disso na conversa com o cardeal, mesmo sabendo que se tratava de uma eleição
atípica, a começar do fato de que não havia candidatos, pelo menos não
formalmente, e, portanto, não havia campanha eleitoral, marquetagem, debates na
TV e por aí vai.
Mesmo
assim, o interlocutor me surpreendeu com uma conversa filosófico-espiritual. Insistiu
uma e outra vez em que, no fundo, quem decidia a eleição era o Espírito Santo,
que soprava ao ouvido dos cardeais o nome certo para governar a Igreja Católica.
Confesso
que logo me veio um pensamento iconoclástico: esse Espírito Santo deveria ser
um brincalhão porque soprava nomes diferentes aos ouvidos de diferentes
cardeais, tanto que a eleição raramente se definia na primeira votação.
Aliás,
Bento 16 só obteve os dois terços (ou mais) dos votos necessários na quarta
tentativa.
Essa
conversa de 2005 voltou à memória ao ler ontem na Folha que o Vaticano está procurando
mostrar que os documentos do papa que vazaram representam não só ideias dele,
mas também "os pensamentos de pessoas que, ao escrever para o papa,
acreditavam estar essencialmente falando perante Deus".
Pela
conversa de 2005 e por essa notícia, deduzo obrigatoriamente que não é apenas
um cardeal, mas uma parte importante dos fiéis que acredita na interferência do
Espírito Santo em assuntos da igreja ou até pessoais.
Como
não desdenho da fé de ninguém (ao contrário, respeito todas), meu pensamento
iconoclástico me causou à época um certo mal-estar.
Não
que ache que o Espírito Santo é de fato o grande eleitor dos papas. Mas não me
dou o direito de debochar de quem, sinceramente, crê nessa hipótese.
Até ler
os comentários de Juan Arias no debate que a edição on-line de "El País"
promove sobre os vazamentos. Arias, hoje correspondente do jornal no Brasil, é talvez
a pessoa mais qualificada para falar de assuntos do Vaticano, correspondente
que foi, durante 14 anos, em Roma, além de ex-sacerdote.
Arias
atribui o vazamento a intrigas em torno da sucessão do papa, iguais às que
foram correntes na Idade Média e no Renascimento. "Os italianos querem
voltar ao papado após 30 anos", comenta, já apontando o dedo na direção
dos possíveis responsáveis pelas intrigas dos tempos modernos.
Mais:
"Ninguém chega a cardeal sem a secreta esperança de ser ele o papa. E nunca
vai pronunciar o nome de outro cardeal que possa ser melhor papa do que ele".
É,
acho que o Espírito Santo tem pouco a ver com essa história.
crossi@uol.com.br