sábado, 26 de julho de 2014


27 de julho de 2014 | N° 17872
ANTONIO PRATA

Íntimos desconhecidos

Finalmente, transpostos junho e julho, esses meses vagabundos em que a vida foi marcada, driblada e vencida pela Copa, consegui terminar de ler a biografia do Rubem Braga, que eu havia começado em maio. Ontem, às duas e tanto da manhã, com os olhos ardendo e um aperto no peito, virei a última página.

Ao apagar o abajur, pensei que a angústia fosse causada pela morte do “velho Braga”, descrita de forma sóbria e delicada por Marco Antonio de Carvalho: descobrindo um câncer em estágio avançado, o cronista, que sempre viu mais beleza nas pescarias do que nas epopeias, optou por não se tratar; preparou a partida, distribuiu os livros e os quadros, se despediu dos amigos, deitou e não se levantou mais.

Hoje, porém, acordei com a sensação de que não era exatamente a morte do escritor a parte mal digerida da biografia. A azia existencial me perseguiu ao longo do dia e só no meio da tarde, quando terminei um e-mail com uma exclamação (o que pode ser menos bragueano do que uma exclamação?), entendi o que me incomodava – algo que eu já vislumbrava desde que passei a conviver mais de perto com os humores, afetos e idiossincrasias do meu íntimo desconhecido: o Rubem Braga não ia gostar de mim.

É duro constatar um negócio desses, depois de duas décadas de convívio intenso. É como descobrir que a sua mulher está te traindo. Não, é pior: a mulher que trai o marido pode amá-lo – ou, pelo menos, já o ter amado, um dia. Rubem Braga nunca me amaria. Ele era quieto, eu, falastrão. Ele não sorria pra todo mundo, eu pareço um candidato a vereador. Ele era um velho lobo do mar, eu cresci patinando no gelo, no Shopping Morumbi.

Nesses 20 anos de relação, já me imaginei várias vezes voltando ao passado e sendo apresentado ao cronista, por um amigo em comum. Já me projetei na famosa cobertura da Barão da Torre, em Ipanema, batendo papo no jardim. Não me vejo falando sobre passarinhos ou ventos alísios – nasci em São Paulo, cresci em São Paulo, minha relação mais próxima com a natureza foram dois gatos e uma tartaruga de aquário –, mas quem sabe conversássemos sobre a infância, que é sempre interiorana, e descobríssemos insuspeitos paralelos entre o Itaim Bibi e Cachoeiro do Itapemirim? Eu lhe mostraria um ou outro texto, ele me ofereceria uma cachaça, comeríamos jabuticabas.

Todas essas fantasias desapareceram, agora que li o livro. Não sou o tipo de pessoa com quem Braga se daria bem. Me vejo saindo de sua cobertura e o ouço comentar com nosso amigo que me achou frívolo, meio bobo, talvez. Pede – seco, mas não rude – que não me leve mais ali.
  

Saímos andando por Ipanema, eu e esse amigo sem rosto, que me consola. Para minha sorte, esse amigo é muito bem relacionado e avista, no fundo de um bar, uma mesa improvável, mas não impossível: João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna. Nos sentamos. Os dois falam pelos cotovelos e riem muito, como eu. Em meia hora, somos amigos de infância. Eles me acham o máximo, me convidam para uma moqueca em Itaparica, um vatapá no Recife e uma saideira no Antonio’s, onde nos aguardam Millôr Fernandes e Vinicius de Moraes. Saio trôpego pela calçada, às duas e tanto da manhã, com os olhos ardendo e o peito transbordante.

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