segunda-feira, 14 de julho de 2014


14 de julho de 2014 | N° 17859
NILSON SOUZA

Câmera lenta

Sou quase neurótico em relação a horários. Quando tenho um compromisso nas primeiras horas da manhã, não durmo. E saio de casa de madrugada, especialmente depois que o trânsito da minha cidade (e de centenas de outras neste país) se transformou em rali com obstáculos. Até para uma sessão de cinema sou dos primeiros a chegar – e isso bem antes das casas de espetáculo (teatros, principalmente) proibirem o acesso de quem chega atrasado.

Na infância, chegava cedo ao cinema para trocar gibis. Hoje é difícil imaginar, mas a garotada da minha época (lá pelo tempo do cinema mudo) ia para a sala de projeção com pilhas de revistinhas sob os braços, para trocar antes e depois do filme. Na adolescência, eu chegava cedo para não perder o Canal 100.

O Canal 100 era um cinejornal dirigido pelo carioca Carlos Niemeyer, que foi namorado da cantora Carmem Miranda e que inventou uma maneira original de filmar o futebol. Com câmeras colocadas em vários pontos do estádio, especialmente no Maracanã, que era o palco principal das filmagens, ele flagrava lances espetaculares e expressões de jogadores e torcedores, que depois eram projetadas em câmera lenta no telão.

Quem viu jamais vai esquecer. Só agora, com a alta tecnologia das câmeras digitais, é que a televisão está conseguindo fazer algo parecido nessas imagens que mostram grupos musculares e respingos de suor dos atletas.

A maior sacada de Niemeyer no futebol foi virar as câmeras para os torcedores. Enquanto a bola rolava, o Canal 100 gravava o pessoal da galera roendo unhas, fazendo caretas e exibindo olhos esbugalhados e bocas desdentadas. Naqueles tempos pretéritos, as arquibancadas não eram frequentadas apenas pela elite branca, os ingressos ainda não tinham caído nas mãos dos cambistas da Fifa.

No cinema, o futebol era muito mais encantador do que no próprio estádio. A plateia emudecia aos acordes da música Na Cadência do Samba, que era a característica do cinejornal, e só interrompia o silêncio para vibrar com lances e dribles vistos em detalhes inimagináveis, ou para rir de algum geraldino flagrado em momento de desespero.


Os geraldinos, aqueles torcedores mulambos que roíam os dedos na beira do campo, desapareceram dos estádios. E o futebol brasileiro é que está sendo jogado em câmera lenta. Estamos precisando acordar mais cedo.

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