27
de julho de 2014 | N° 17872
L.
F. VERISSIMO
Ao ponto
Li
que nos Estados Unidos está havendo uma controvérsia sobre um ponto. Em
diferentes versões de um determinado documento, o ponto aparece ou não aparece.
Seria uma questão menor se o documento não fosse a Declaração de Independência
assinada pelos fundadores da República Americana em 1776. E se a ausência ou
presença do tal ponto não alterasse o sentido de uma frase, a que fala da
“verdade autoevidente” que todos os homens são criados iguais, com direito à
vida, à liberdade e à busca da felicidade.
E
mais: se o sentido da frase com ou sem ponto não influísse o debate moderno sobre
direitos individuais contra o direito do Estado de intervir para assegurar a
felicidade coletiva. Não sei bem onde entra o tal ponto, mas, simplificando, se
ele existe dá razão à direita, se não existe dá razão à esquerda – ou
vice-versa. A versão original da Declaração não ajuda. Apesar de estar exposta
numa redoma à prova de contágio humano, está tão apagada pelo tempo que não se
vê mais a pontuação.
Há
dias, lembrei aqui a frase do Mao Tsé-Tung quando lhe teriam perguntado quais
eram os efeitos da Revolução Francesa na história do mundo: “É cedo para
saber”, teria dito Mao. O cineasta Giba Assis Brasil me corrigiu. A frase não é
do Mao, é do Chu En-Lai. E foi dita em resposta a uma pergunta mal traduzida,
ou devido a um erro do próprio Chu, que era a eminência intelectual da
Revolução Chinesa e uma das figuras mais fascinantes do século 20, mas não
estava livre de fazer confusão.
A
pergunta, feita a Chu durante a histórica visita de Nixon à China em 1971, era
sobre a Revolução Francesa de 1968, a
dos estudantes, não a de 1789. O erro nunca foi corrigido porque a frase era
ótima, um delicioso exemplo de paciência oriental e pensamento a longo prazo
que explicava o sucesso dos comunistas na China. O episódio sugere que daria
para reescrever a história do mundo baseando-se apenas em traduções malfeitas
nos grandes encontros políticos. No terrível poder, até de causar guerras, dos
maus intérpretes.
Confusão
maior do que as de pontos errantes e traduções mal-entendidas é a de termos que
mudam radicalmente de significado de língua para língua. O exemplo mais
evidente é o da denominação “liberal”, que nos Estados Unidos quer dizer uma
coisa e em português e outras línguas quer dizer o seu oposto.
Um
liberal americano é de esquerda, e nada lhe agradaria mais do que saber que uma
reinterpretação da Declaração de Independência reforça sua posição coletivista
e intervencionista. Um liberal brasileiro, ou francês, é de direita, defensor
do mercado livre, de um empreendedorismo sem limites e de uma agenda conservadora.
Por isso, ao ouvir falar que alguém é liberal, é sempre bom perguntar “Em que
língua?”.
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