sábado, 26 de julho de 2014


27 de julho de 2014 | N° 17872
L. F. VERISSIMO

Ao ponto

Li que nos Estados Unidos está havendo uma controvérsia sobre um ponto. Em diferentes versões de um determinado documento, o ponto aparece ou não aparece. Seria uma questão menor se o documento não fosse a Declaração de Independência assinada pelos fundadores da República Americana em 1776. E se a ausência ou presença do tal ponto não alterasse o sentido de uma frase, a que fala da “verdade autoevidente” que todos os homens são criados iguais, com direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade.

E mais: se o sentido da frase com ou sem ponto não influísse o debate moderno sobre direitos individuais contra o direito do Estado de intervir para assegurar a felicidade coletiva. Não sei bem onde entra o tal ponto, mas, simplificando, se ele existe dá razão à direita, se não existe dá razão à esquerda – ou vice-versa. A versão original da Declaração não ajuda. Apesar de estar exposta numa redoma à prova de contágio humano, está tão apagada pelo tempo que não se vê mais a pontuação.

Há dias, lembrei aqui a frase do Mao Tsé-Tung quando lhe teriam perguntado quais eram os efeitos da Revolução Francesa na história do mundo: “É cedo para saber”, teria dito Mao. O cineasta Giba Assis Brasil me corrigiu. A frase não é do Mao, é do Chu En-Lai. E foi dita em resposta a uma pergunta mal traduzida, ou devido a um erro do próprio Chu, que era a eminência intelectual da Revolução Chinesa e uma das figuras mais fascinantes do século 20, mas não estava livre de fazer confusão.

A pergunta, feita a Chu durante a histórica visita de Nixon à China em 1971, era sobre a Revolução Francesa de 1968, a dos estudantes, não a de 1789. O erro nunca foi corrigido porque a frase era ótima, um delicioso exemplo de paciência oriental e pensamento a longo prazo que explicava o sucesso dos comunistas na China. O episódio sugere que daria para reescrever a história do mundo baseando-se apenas em traduções malfeitas nos grandes encontros políticos. No terrível poder, até de causar guerras, dos maus intérpretes.

Confusão maior do que as de pontos errantes e traduções mal-entendidas é a de termos que mudam radicalmente de significado de língua para língua. O exemplo mais evidente é o da denominação “liberal”, que nos Estados Unidos quer dizer uma coisa e em português e outras línguas quer dizer o seu oposto.


Um liberal americano é de esquerda, e nada lhe agradaria mais do que saber que uma reinterpretação da Declaração de Independência reforça sua posição coletivista e intervencionista. Um liberal brasileiro, ou francês, é de direita, defensor do mercado livre, de um empreendedorismo sem limites e de uma agenda conservadora. Por isso, ao ouvir falar que alguém é liberal, é sempre bom perguntar “Em que língua?”.

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