19 de julho de 2014 | N°
17864
CLAUDIA LAITANO
Confissões
“Quem fala não é quem escreve, e
quem escreve não é quem é.” A frase de Roland Barthes pode ser lida como uma
espécie de lembrete ao leitor de que ele deveria desconfiar do escritor mesmo
quando ele parece estar dizendo a verdade – que mais não seja porque quase
sempre é impossível dizer ou escrever toda a verdade.
Com frequência, a literatura
borra os limites entre o que é realidade e o que é invenção, propositalmente
confundindo o leitor. Será que isso aconteceu mesmo? Ele traiu a mulher? Foi
traído? A mãe era mesmo uma bruxa? E o que a mãe dele achou de ser descrita
como uma bruxa? O escritor que, confessadamente ou não, utiliza elementos
biográficos em um romance está autorizando o leitor a completar o retrato do
autor/personagem com a sua imaginação.
Proust, por exemplo. Sabemos
bastante sobre a sua biografia, que viveu da fortuna da família, gostava de
frequentar festas elegantes e a certa altura abandonou tudo para trancar-se no
quarto e escrever um romance largamente inspirado em sua própria vida. Proust
era, ao mesmo tempo, autor e personagem do seu livro, e quando o leitor pensa
no homem e em como ele deveria ser quando não estava escrevendo, fatalmente vai
misturar a verdade histórica com a própria imaginação.
O escritor que devorei agora nas
férias, o norueguês Karl Owe Knausgard, é um fã de Proust e escreveu ele mesmo
um romance em seis partes dedicado a esquadrinhar a própria vida – mais
explicitamente ainda que Proust, que pelo menos trocava os nomes dos
personagens reais que o inspiraram. Nos livros A Morte do Pai e Um Outro Amor,
já lançados no Brasil, ficamos sabendo tudo sobre a família de Knausgard, suas
namoradas, suas manias, suas pequenas e grandes fragilidades de caráter.
Quando terminei o primeiro livro,
a sensação era de que eu conhecia mais sobre Knausgard do que sobre algumas
pessoas que eu vejo todos os dias no trabalho há mais 10 anos.
O leitor que não é muito chegado
em Proust e nem sequer ouviu falar de Knausgard pode estar se perguntando para
que, afinal, serve saber tanto assim sobre a vida de uma outra pessoa,
principalmente numa época em que todo mundo parece estar fazendo a mesma coisa:
narrar e fotografar a si mesmo o tempo todo. Boa e decisiva pergunta, perspicaz
leitor. A tecnologia possibilitou esse ambiente de trocas inesgotáveis de
confissões cotidianas: tomei café, briguei com o caixa do banco, emagreci cinco
quilos.
Ao mesmo tempo, a investigação
íntima, por vezes radical e perturbadora, como no caso dos livros de Knausgard,
é cada vez mais popular como recurso narrativo. O resultado é essa curiosa
coexistência entre um interesse renovado pelas infinitas possibilidades
estéticas da não ficção (ensaios confessionais, memórias, documentários do
gênero testemunhal, híbridos de gêneros) e a saturação do eu banalizado,
vulgar, que apenas parece gritar: “Eu existo! Olha pra mim!”.
Por que algumas confissões
íntimas soam banais e vazias, e outras profundas e transcendentes? O que separa
a arte do mero narcisismo? A resposta talvez não esteja no “o que” se diz nem
mesmo no “como” se diz (embora isso faça muita diferença).
A chave para entender a
capacidade de transcendência de um relato pessoal talvez esteja no “por que” se
diz. É preciso que a confissão venha acompanhada do esforço de dar algum
sentido à experiência passada para que ela possa ultrapassar a si mesma e tocar
aos outros de forma profunda. No fim, não importa tanto saber o quanto Proust e
Knausgard revelaram sobre suas próprias vidas em seus livros, mas o quanto
encontramos de nós mesmos naquilo que eles escreveram.
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