26
de julho de 2014 | N° 17871
CLÁUDIA
LAITANO
Universo paralelo
Uma
cena-chave de um dos filmes mais sensíveis sobre o conflito entre palestinos e
israelenses envolve o futebol brasileiro. O documentário Promessas de um Novo
Mundo (2001), rodado em Israel em um período de relativa paz na região,
acompanha o cotidiano de sete crianças árabes e israelenses durante três anos,
mostrando como elas eram levadas a reproduzir os conflitos aparentemente insolúveis
de seus pais e avós.
O
filme promove uma trégua nesse eterno retorno da violência reunindo esses
garotos de origens diferentes antes que a opinião deles sobre o outro lado
estivesse completamente formada. O ódio tribal vem do medo, da ameaça, real ou
imaginada, mas também da incapacidade de reconhecer nos inimigos aquilo que os
torna parecidos conosco. A certa altura do documentário, em um encontro que
parecia que não ia dar em nada por falta de um assunto que quebrasse o gelo e a
desconfiança mútua, surge o tema futebol.
E do
futebol se chega ao Brasil, e do Brasil aos craques brasileiros que tanto os
meninos palestinos quanto os israelenses idolatravam. Estava estabelecido o
ponto de contato que puxou o fio da conversa e dos interesses comuns. Quando
assisti a essa cena, anos atrás, senti um orgulho cívico de cinco Copas do
Mundo. Nada mal, neste planeta tão bagunçado, ser associado a um instante de trégua
para a camaradagem e a paz.
Quando
o Brasil foi patrolado pela Alemanha e me coube consolar uma adolescente
desconsolada, tratei de lembrar a ela que a beleza do futebol é exatamente a de
provocar uma espécie de sofrimento que nunca é definitivo ou irremediável. Ao
contrário da vida real, em que choramos por dores que muitas vezes não têm
consolo ou possibilidade de conserto, os sofrimentos e as alegrias do esporte são
lindamente provisórios.
As
guerras e as mortes súbitas incluem a possibilidade de intervalos de paz e de
renascimento – e se tantas pessoas no mundo amam o futebol é porque
experimentar essa emoção intensa e transitória de alguma forma alivia a tensão
dos combates de verdade do dia a dia.
Ao
qualificar o Brasil de “anão diplomático”, o porta-voz de Israel rosnou para o
governo brasileiro mais ou menos dentro do jogo do morde e assopra das relações
internacionais, mas ao fazer piada com o 7x1 talvez tenha atravessado uma
fronteira sagrada – aquela que separa a realidade da sua representação. Se as
rivalidades e o tribalismo fazem parte da natureza humana, o futebol é o
universo paralelo em que os antagonismos são sublimados, e os embates
submetidos a um rol de regras previamente acordado.
Mesmo
que uma minoria radical apele para a violência e faça barulho na arquibancada,
quem comanda o campeonato é a maioria sensata, que fiscaliza o fair play e pune
o chute nas canelas. No mundo das guerras reais, ao contrário, às vezes são
justamente as torcidas organizadas mais intolerantes que escalam os times e
definem até onde vai a disputa.
Nossa
guerra de mentirinha contra a Alemanha, trágica e vexatória na dimensão do
futebol, não impediu que muitos brasileiros torcessem pelos alemães no domingo
seguinte. São assim as abençoadas rivalidades esportivas: sempre podemos
escolher sair delas por algumas horas para tomar um chope com o adversário no
bar da esquina.
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