domingo, 23 de novembro de 2008


FERREIRA GULLAR

A sociedade culpada

O médico entrou em parafuso, internou-se numa clínica, fechou o consultório e virou jornalista

ESTAVA NA MODA afirmar que loucura não existe, que os remédios psiquiátricos, como o Haldol, eram uma camisa-de-força interna para manietar o doente mental (que não era doente) e que a internação era um ato de violência contra alguém que pensava diferente.

Um conhecido meu, médico psiquiatra de mente amplamente aberta, aderiu a tais idéias e conforme elas passou a atuar. Um de seus pacientes era um rapaz de 18 anos que, certo dia, entrou em delírio.

Os pais foram procurá-lo, dispostos a internar o filho, propósito esse que foi radicalmente repelido pelo médico. Os dois alegaram que já não dormiam havia alguns dias porque o filho não parava de esbravejar e ameaçar agredi-los. Coerente com suas idéias, o médico tomou uma atitude corajosa: decidiu levar o rapaz para sua própria casa.

Disse e fez, mas, não se passou um dia inteiro, sua mulher reagiu: não suportaria aquele rapaz a falar sem parar dentro de casa; o marido teria de escolher entre ela e o paciente.

Disse-lhe isso pelo telefone e avisou que, naquele momento, mudava-se para a casa da mãe. Tomado de surpresa, ele não soube o que dizer mas dispôs-se a conversar com a esposa e convencê-la a voltar para casa.

Naquela mesma noite, foi encontrá-la, mas nada conseguiu. Para encurtar a história: três ou quatro dias depois, o rapaz suicidava-se, jogando-se da janela do apartamento. O médico entrou em parafuso, internou-se numa clínica de recuperação, depois fechou o consultório e virou jornalista.

Nos anos 60 do século passado, quando se drogar era visto como um modo de contestar a sociedade de consumo, muito jovem pirou e foi parar nas clínicas psiquiátricas.

Surgiu então a tese de que o diagnóstico de esquizofrenia era fruto de um preconceito reacionário e burguês. Na verdade, o que a "máfia de branco" tentava fazer era calar os jovens e sufocar a rebelião que ia mudar o mundo. Muitas famílias foram arrastadas a esse sorvedouro.

Dentre tantos, houve o caso de um amigo meu, cujo filho, ao tomar uma dose de LSD, entrou em delírio e não conseguiu mais sair dele: queixava-se de que seu cérebro havia desaparecido.

Em seguida, entrou em crise furiosa e tentou agredir a mãe. O pai interveio e ele, inesperadamente, saiu pela porta da rua e sumiu. Um mês depois, soube que estava detido numa delegacia de polícia, por ter tentado roubar um carro.

Foi até lá e obteve permissão para levá-lo para casa, já que estava evidentemente delirando. Ao chegar, ele se trancou no quarto e tentou fugir pela janela (moravam no quinto andar); como não conseguiu, começou a quebrar os móveis do quarto.

O pai chamou uma ambulância e o internou. Uma semana depois, foi chamado pela equipe médica da clínica para uma conversa: soube então que a causa da doença de seu filho era social e familiar; quem primeiro deveria ser tratado era a família. "Então soltem ele e me internem", retrucou o pai, fulo da vida.

Inconformado com o diagnóstico, pediu um encontro com a médica que tratava do seu filho. Se a causa era familiar, por que os dois outros filhos seus não adoeceram nem se meteram com drogas?

A resposta da médica foi que alguns adolescentes são mais vulneráveis que outros e, por isso, mais facilmente atingidos pelos problemas sociais e familiares.

"Mas, na minha família", disse o pai, "não existe nenhum problema grave, que eu saiba, já que minha mulher e eu nos damos muito bem". "É o que todos os pais dizem", respondeu a médica, "porque não querem admitir sua culpa na doença do filho".

Foi aí que ele lançou de um argumento definitivo. "Doutora Sílvia, qualquer órgão do nosso corpo não pode adoecer? Por exemplo, uma pessoa não pode sofrer do fígado, ou dos rins ou dos pulmões, sem que a sociedade ou família tenham nada a ver com isso? Ou será que pedra no rim é culpa dos parentes?"

"Certamente que não", admitiu a médica. "Então", retomou ele a argumentação, "qualquer órgão do nosso corpo pode sofrer de uma anomalia ou por razões genéticas ou lá pelo que for, não pode?"

Ela admitiu que sim, pode. "Quer dizer que o coração pode adoecer, os rins, o estômago, só o cérebro que não? Se o cérebro adoecer, a causa é ou social ou familiar? Não pode haver, por exemplo, uma disfunção na química cerebral?"

Não sei qual foi a resposta da médica, mas a verdade é que a medicina descobriu que a causa dessa doença chamada esquizofrenia é a maior ou menor absorção, pelos neurônios, de uma substância chamada dopamina.

Essa descoberta permitiu a elaboração de remédios que, se não curam definitivamente a doença, permitem ao esquizofrênico conviver e até mesmo trabalhar.

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