sábado, 29 de novembro de 2008



30 de novembro de 2008
N° 15805 - MARTHA MEDEIROS


Capturados

Um dos DVDs mais legais a que assisti este ano foi A Vida por Trás das Lentes, documentário sobre a carreira da fotógrafa americana Annie Leibovitz.

Tive a oportunidade, também, de ver em Paris a exposição que registra todas as fases de sua trajetória, começando pelas fotos que fazia da família, passando pela fase roqueira (quando foi a principal fotógrafa da revista Rolling Stones), até a consagração na Vanity Fair.

Considero fotografia uma arte, pela capacidade que tem de capturar a alma do fotografado e revelar a nós algo que nosso olho não consegue enxergar.

Lembro que, na minha infância, meu pai não deixava passar um único evento sem fotos: Natal, aniversários, piqueniques na praia. Click, click, click.

Ficávamos um tempão parados, eu, meu irmão e minha mãe, três estátuas sorridentes, esperando o momento de ele encontrar o melhor ângulo, o melhor foco, a melhor luz, para então clicar. Máquina digital, naquela época, era coisa da família Jetson.

Também tirei muitas fotos de minhas filhas quando eram pequenas e guardo inúmeros registros de viagens e de alguns passeios, encontros, momentos que não acontecem todo dia. Até aí tudo dentro de uma certa normalidade, e sou tendenciosa como todos: a gente acha que só a maneira como vivemos é que é normal. Mas o normal evoluiu muito de uns tempos pra cá.

Hoje, com um celular na mão, você documenta partos, tsunâmis, incêndios, transas, shows e crimes cometidos bem na sua frente. Inclusive, algum crime por ventura cometido por você.

Me pergunto: se você não documentar suas experiências e emoções, elas deixam de existir? Você deixa de existir? Não deveria, mas dá a impressão que sim.

Num surto catastrofista, imagino que em breve deletaremos da nossa memória tudo aquilo que não estiver documentado. Se eu quiser lembrar de uma viagem ou de uma festa, não conseguirei, a não ser que a tenha fotografado e filmado.

O momento em que seu namorado lhe pediu em casamento, aquela caminhada que deu sozinha à beira-mar, o mergulho noturno, o café da manhã na cama enquanto viam um filme do Chaplin, a declaração de amor no meio da estrada – se você não fotografou nada disso, será que aconteceu mesmo? Você ainda consegue lembrar da vida sem a ajuda de aparelhos?

Minhas duas últimas viagens ao Exterior foram feitas sem máquina fotográfica ou celular na bagagem. Fui e voltei sem uma única foto, o que para muitos talvez signifique “ela não foi”. Mas fui. A vida também acontece sem provas documentais.

Ainda Annie Leibovitz: entre seus inúmeros flagrantes, constam os momentos finais de seu pai e da escritora Susan Sontag, as duas pessoas que ela mais amou. As fotos de ambos, cada um na sua hora, agonizando, estão na exposição e no DVD.

Annie Leibovitz é uma artista, e suas lentes são seus olhos, ela não dissocia vida e trabalho, mas admito que senti, mesmo havendo consentimento dos fotografados, uma invasão na intimidade mais secreta de cada um, que é a solidão.

Louvável como registro jornalístico, mas desnecessário como despedida pessoal.

Tudo isso para dizer que certas ocasiões ainda me parecem suficientemente fortes para resistirem intactas na nossa lembrança, e apenas nela.

Um ótimo domigo e um excelente início de semana.

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