segunda-feira, 17 de novembro de 2008



UM POUCO DE METAFÍSICA

Deve acontecer com todo mundo. Semana passada, fiquei com aquela saudade de mim. Mas não uma saudade objetiva, de algum tempo ou de algum feito.

Não era, por exemplo, uma saudade de quando eu tinha 13 anos e o Inter brilhava nacionalmente. Não, com certeza não era uma saudade do Fogaça e do Falcão. Nada disso. Era uma saudade de mim sem mais nem menos. Não era uma saudade da juventude, da infância ou de algum momento feliz.

Não era uma saudade de Paris. Nem de Palomas. Muito menos de Paros. Era uma saudade dessas que fazem a gente mexer nos discos e ouvir o que parecia soterrado para sempre.

Quando sinto saudade de mim, algo que raramente acontece, eu começo ouvindo Beethoven, passo por Charles Trenet, Chico Buarque, Milton Nascimento, Vinícius, Janis Joplin, Nélson Gonçalves, Cartola, Edu Lobo, Belchior, Elis Regina e termino... Não vou dizer. Bom, bem pensado, cada um com seus gostos, termino na Jovem Guarda. Não só, porém, em Roberto Carlos e na sua turminha mais próxima.

Eu sou capaz de verdadeiros desatinos musicais. Deviam me prender quando estou com saudade de mim para evitar a exumação de cadáveres musicais. Julgo que eu seja exatamente como todo mundo.

Exceto as gerações educadas no rock. Essas só cometem desatinos musicais em inglês e com pretensões comportamentalmente renovadoras.

Já me peguei escutando, sem a menor sensação de ridículo e de porta aberta, 'parece que eu sabia/ que hoje era o dia/ de tudo terminar/ pois logo notei/ quando telefonei/ pelo seu jeito de falar'.

Normalmente a minha loucura se resume a ouvir José Mendes como trilha sonora para as minhas lembranças de guri da campanha. O engraçado desse tipo de saudade, que chamarei de metafísica, é que ela parece muito chata aos olhos e ouvidos dos outros.

Eu mesmo fujo quando alguém me fala que está melancólico, quer dizer, jururu, pois ninguém usa a palavra melancólico a não ser quando está com cólica, por uma necessidade de rima e um pudor anacrônico. Eu suspeito de quem não sente saudade de si.

A maioria, contudo, é mais tolerante com um sujeito com cólica do que com alguém saudoso de si. Certamente, isso tem a ver com a nossa tendência a crer mais no determinismo do que no livre arbítrio. Somos uma civilização que crê no determinismo por influência de certo positivismo científico e por interesse.

O determinismo nos isenta de certas responsabilidades. A cólica – que belo assunto para uma crônica inteira – seria o produto de uma necessidade natural, e não uma escolha individual.

Aí se vê a limitação filosófica das pessoas. A saudade de si também não é uma escolha. Ou, ao contrário, a cólica pode muito bem ser o resultado de uma série de escolhas inadequadas dos indivíduos.

Um ser humano com saudade de si, ou com cólica, pode gritar com Schopenhauer para o criador: 'Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada para fazer surgir uma tal massa de desgraça e de angústia?'. Não sejamos tão dramáticos.

As mulheres, que sofrem com as cólicas menstruais, sabem que depois passa. A saudade de si é como certa dor provocada por uma batida no joelho: dá vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo. É uma dor gostosa. Sem contar que torna útil aquela massa de discos armazenados.

Pois saudade de si, para a minha geração, só se cura ouvindo música bizarra em vinil. A coisa só se torna séria quando a pessoa resolve desencavar suas poesias de adolescência. Diante desse sintoma, melhor consultar um médico.

juremir@correiodopovo.com.br

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