sábado, 29 de novembro de 2008



29 de novembro de 2008
N° 15804 - A CENA MÉDICA | MOACYR SCLIAR


A história de um estigma

Porto Alegre sediou, nesta semana, um importante evento médico, o Congresso de Hansenologia. Congresso de quê? – estranharão vocês. Hansenologia é a parte da medicina que estuda a hanseníase, o termo científico para lepra.

Por disposição legal, no Brasil esta última palavra não pode ser usada em documentos oficiais. Isto reflete a existência de um dos mais antigos estigmas da história da humanidade.

O Antigo Testamento menciona uma doença conhecida como tzaraat, palavra em geral traduzida como lepra, ainda que outras doenças de pele pudessem estar incluídas neste rótulo.

O diagnóstico estava a cargo do sacerdote; médicos à época não eram figuras muito freqüentes e nem muito confiáveis. Além disso, o diagnóstico da lepra não era exatamente um procedimento médico; nenhum tratamento, mesmo tentativo, era instituído. O objetivo era rotular o paciente como “puro” ou “impuro”.

E, se se tratava de “impureza”, via-se nas lesões a evidência do castigo divino do qual a pele era um alvo habitual. Por que a pele? Em primeiro lugar, porque a pele é visível. Uma doença dos rins, por exemplo, dificilmente serviria como estigma. As lesões da hanseníase, às vezes deformantes, saltam aos olhos.

Além disso, trata-se de doença contagiosa (muito pouco contagiosa, mas contagiosa, de qualquer maneira) de modo que contrai-la levantava a suspeita de contato corporal – de sacanagem, em outras palavras.

Que o tabu funcionou, mostra-o o fato de que o cristianismo também o endossou.O modelo de diagnóstico era semelhante ao do Antigo Testamento, mas ficava a cargo de uma comissão, composta de um bispo, vários clérigos e também um leproso, considerado especialista na matéria.

Rotulado o examinando como leproso, procedia-se ao processo de exclusão: ele era envolto em uma mortalha, e rezava-se uma missa de réquiem; os presentes jogavam terra sobre o excluído que era conduzido a um dos muitos leprosários (quase 20 mil na Europa), administrados e cuidados por ordens religiosas.

O leprosário de Itapoã, aqui no RS, surgiu relativamente tarde, em 1940, e hoje está praticamente desativado.

Com o final da Idade Média, e por razões que não são bem claras, o problema da lepra diminuiu consideravelmente. No final do século 19 foi identificado, pelo cientista norueguês Gerhard Armaur Hansen (daí o nome hanseníase) o bacilo causador da doença; a partir daí desenvolveu-se um tratamento que, na imensa maioria dos casos, resulta em cura.

Mas o estigma persistiu por algum tempo e gerou a medida politicamente correta de evitar a palavra lepra. O que causou alguns problemas. Os pacientes não sabiam o que é hanseníase, e o médico tinha de traduzir: “É a antiga lepra”. Ou seja: de alguma forma a palavra era dita.

Estigmas vêm e vão, e disto temos vários exemplos. Num passado ainda recente, a palavra “colono” era depreciativa; hoje é motivo de orgulho. A eleição de Barack Obama pode ajudar a acabar com o tom pejorativo com o qual os racistas pronunciavam a palavra negro.

É uma lição que a história nos ensina: de alguma maneira, a humanidade avança. Avança graças à ciência, avança graças ao bom senso. Aos poucos, trocamos o estigma pela lógica. O que é um benefício para muita gente.

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