sábado, 22 de novembro de 2008



23 de novembro de 2008
N° 15798 - MOACYR SCLIAR


A imbatível Tamar

Não faltam mulheres admiráveis na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, e cada um de nós poderia fazer a sua lista com numerosos nomes. Na minha lista há uma personagem que me parece absolutamente fascinante, o sonho de todo ficcionista, uma mulher chamada Tamar.

A narrativa aparece logo no começo do Livro, em Gênesis, capítulo 38. Ali encontramos o patriarca Judá, que tem três filhos: Er, Onan e o caçula Shelá. Cabia ao patriarca arranjar esposas para seus filhos (naquele tempo a noção de paixão, de namoro, simplesmente não existia) e, para o primogênito Er, ele escolhe Tamar, cuja descrição não aparece no texto, mas que podemos imaginar como mulher jovem e bela.

O casamento se realiza, mas não resulta em filhos, o que, à época do “crescei e multiplicai-vos”, representava uma tragédia. Da qual aparentemente Er é culpado, porque Deus o faz morrer.

De acordo com os costumes tribais, se o marido morria sem deixar descendentes, cabia ao seu irmão ou a um parente próximo engravidar a viúva para que as propriedades não ficassem sem herdeiro. Onan, o segundo irmão, revolta-se contra este desígnio: ele não quer servir de banco de esperma.

De modo que cumpre a tarefa, mas à sua maneira: vai para a cama com Tamar, tem relações com ela, mas no momento decisivo, ejacula no chão (o termo “onanismo” não se refere, portanto, à masturbação, como todo mundo pensa, mas é, na verdade, um coito interrompido). Uma transgressão, portanto, pela qual Onan também é punido por Deus com a morte.

Sobra o caçula, Shelá, que está entrando na adolescência. Tamar o quer para esposo, mas agora é o patriarca quem vacila: esta mulher dá azar, pensa ele, já perdi dois filhos, não quero perder o terceiro. Sai-se com respostas evasivas: Shelá ainda não está maduro para isso, vamos esperar etc.

Tamar fica furiosa. Ela agora exige seus direitos. Quer ter um filho de linhagem patriarcal e conseguirá isto de qualquer maneira. Recorre então a um truque espantoso.

Sabendo que Judá, criador de ovelhas, vai a uma feira desses animais numa localidade próxima, disfarça-se de prostituta, posta-se à beira do caminho e consegue seduzi-lo (ajudada pelo fato de que o velho, recentemente viúvo, decerto carecia de mulher).

Judá, sem nada perceber, tem relações com a mulher, que lhe cobra, por isso, um cabrito. Cabrito ele não tem, só ovelhas; mandará o cabrito depois.

A suposta prostituta exige que ele deixe, como garantia, os emblemas de sua dignidade patriarcal: o cajado, o sinete, o colar. Judá vacila, mas resolve aceitar.

Voltando à casa, manda um amigo atrás da mulher, mas ninguém a encontra, seu paradeiro é um mistério. Meses depois, o escândalo: Tamar está grávida. Furioso com o que parece uma traição à sua família e um desafio à sua autoridade, Judá condena-a à morte na fogueira. Na hora em que vai ser queimada viva, Tamar dirige-se à multidão que ali está:

– Vocês não querem saber quem é o pai da criança que trago no ventre?

Ato contínuo, mostra o cajado patriarcal, o sinete, o colar. Judá dá-se conta do que aconteceu, suspende a execução e declara que cuidará de Tamar, que dá à luz a gêmeos.

Durante anos esta história me fascinou, sobretudo por causa de Onan. Mas aos poucos fui me dando conta da importância simbólica de Tamar, de sua patética e às vezes até insólita luta para exigir o filho a que tem direito.

Nasceu daí o romance Manual da Paixão Solitária, que a Companhia das Letras estará lançando na semana que vem. Aqueles que lerem me darão razão: como personagem, Tamar é imbatível.

Agradeço as mensagens de Neide La Salvia, fazendo boas considerações sobre reforma ortográfica; da farmacêutica Berenice Goulart Dallagnol, defendendo uma postura ética nas farmácias; de Helena Stumpf Morelli que, a propósito da chegada do verão e dos riscos dos raios solares, comenta: “Fico pensando na sabedoria das japonesas e das damas antigas, que nunca saíam ao sol sem suas sombrinhas”.

A Lilian Pinto aplaudiu O Baile e a Vida, e a Jaine S. B. Bonardi, de Uruguaiana, informa que o Clube Comercial da cidade realizará um baile-nostalgia com Norberto Baldauf e sua orquestra.

O dr. Sergio Celia e a professora Rosa Maria Pinheiro de Matos gostaram da crônica do Vida em que falei sobre a dificuldade de comunicação entre médicos e pacientes, e a Rafaela K. Dal Molin envia dois textos, também da internet: num deles um médico diz que pagou R$ 44 a seu cabeleireiro, mas que um paciente recusou-se a pagar-lhe R$ 34 por uma consulta, achando demais.

No outro texto, um médico descreve a “síndrome tigróide”: os “tigres” são pessoas que apresentam “busca incessante e compulsiva por atendimento médico”, “atestadomania” e “hiperqueixia”, isto é, queixam-se demais.

Mas a drª. Mariza Montoya, por outro lado, lembra os bons tempos em que os médicos tinham mais tempo para seus pacientes. A propósito da crônica A Conspiração dos Objetos, Maria Elizabeth Knopf Beth expressa sua aprovação, denunciando as tesouras como particularmente perversas e prontas a sumir.

O dr. Flavio Seibt e a professora Gabriela M. de Brito, de Venâncio Aires, também gostaram da crônica e até mandaram emoldurá-la;

o dr. Flavio escreveu a sua própria versão sobre o tema, na qual diz que, para ele, o objeto que mais some é o leva-tudo, que acha mais apropriado denominar de “perde-tudo”.

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