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sábado, 15 de novembro de 2008
15 de novembro de 2008
N° 15790 - CLÁUDIA LAITANO
Troféus
Poucas semanas depois de receber dos médicos o diagnóstico de um tipo especialmente letal de leucemia, a ensaísta Susan Sontag (1933 – 2004) estava de volta ao combate. Reconhecida como uma das intelectuais americanas mais influentes do século 20, Susan já havia desafiado o pessimismo médico em duas ocasiões anteriores e parecia determinada a driblar a morte ainda uma terceira vez.
O tema que a trouxe de volta à arena pública, a divulgação das fotos de tortura e humilhação na prisão iraquiana de Abu Ghraib, era urgente e inescapável para a autora de tantos artigos sobre a força simbólica da fotografia e o impacto das imagens de guerra divulgadas pelos meios de comunicação.
Publicado em maio de 2004, oito meses antes da morte da autora, o brilhante ensaio Regarding the Torture of Others (Diante da Tortura dos Outros) é uma análise contundente não só do contexto político que envolvia a atrapalhada ação do exército americano no Iraque, mas também uma reflexão profunda sobre o imaginário na era da fotografia e do vídeo digital.
Fotografar, filmar, mandar para os amigos, postar na internet, registrar cada momento do dia-a-dia, dos mais banais aos mais espantosos, virou uma espécie de vida paralela nos dias de hoje: “Viver é ser fotografado”, anotou Susan Sontag.
Os soldados que criaram as provas para a própria condenação, acionando suas câmeras digitais diante de cenas de tortura e abuso sexual, estavam apenas reproduzindo um gesto que se tornou universal: usar imagens como troféus, como uma espécie de atestado em pixels de que o sujeito não só viveu, mas viveu intensamente – ou assim gostaria de fazer acreditar.
Em cartaz desde ontem em Porto Alegre, o filme Procedimento Operacional Padrão, do premiado documentarista Errol Morris, nos leva para os bastidores de algumas das cenas que chocaram o mundo quando as fotografias de Abu Ghraib começaram a vazar na internet.
Por meio dos relatos de militares que estiveram, direta ou indiretamente, envolvidos com o caso, ficamos sabendo como cada um dos flagrantes captados pelas câmeras digitais foi montado e registrado para a posteridade.
Pode-se, evidentemente,ver o filme como uma grande crítica ao governo Bush e ao seu inédito talento para arruinar a imagem dos Estados Unidos no resto do mundo – e essa talvez seja a leitura mais óbvia e imediata.
Mas o documentário se torna ainda mais perturbador quando abstraímos os aspectos políticos do episódio, quando esquecemos a guerra, a prisão, os soldados, George Bush e tudo que, de alguma forma, transporta a crueldade daquelas cenas para algum cenário remoto que não nos diz respeito – a não ser como leitores indignados das notícias da seção internacional do jornal.
Não é difícil constatar que esse estranho tipo de perversão, a que não se satisfaz apenas com a violência mas parece necessitar do registro digital para se completar, está cada vez mais perto de nós.
O Iraque fica do outro lado do mundo, a guerra é quase uma abstração, mas Santa Catarina é logo ali na esquina.
Foi lá que um universitário e dois alunos de escolas particulares foram presos esta semana suspeitos de estuprar uma menina de 15 anos durante uma festa – crime devidamente registrado em vídeo e colocado na internet como troféu de caça e abate.
Como os jovens soldados de Abu Ghraib, os meninos catarinenses também foram responsáveis pelas principais provas contra eles mesmos.
Mas isso talvez seja apenas o toque contemporâneo em algo que não tem época, nacionalidade ou classe social, um desvio da espécie que nem a história, a medicina, a psicologia ou qualquer outra ciência foi capaz de explicar: a espantosa capacidade do ser humano para deixar de ser humano.
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