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sábado, 22 de novembro de 2008
22 de novembro de 2008
N° 15797 - CLÁUDIA LAITANO
Atravessando a rua
Uma das memórias físicas mais fortes que eu tenho da minha mãe é a sensação da mão dela apertando firme a minha na hora de atravessar a rua.
Adulta, já mãe de uma menina, era com algum gosto secreto que eu cruzava a rua com ela, antevendo o ritual que se repetia praticamente inalterado desde quando eu era pequena. O gesto de proteção e cuidado era tão amoroso que era impossível recusá-lo protestando uma habilidade já longamente testada para evitar atropelamentos e outros desastres pedestres.
No rápido intervalo entre um lado da rua e o outro, estava combinado que eu voltava a ser criança de novo, desfrutando a preciosa sensação de ser cuidada por alguém que encarava a tarefa de me manter a salvo como uma missão inarredável e sem prazo de validade.
Era compreensível que minha mãe se preocupasse tanto com os carros. Nascida em um lado da cidade em que os perigos do trânsito demoraram a chegar, ela viu os filhos crescerem no Centro de Porto Alegre em meio a uma movimentação urbana inédita para quem nasceu e cresceu na Cavalhada dos anos 30.
Ser atropelado era um risco, assim como pegar uma doença grave, repetir o ano ou “andar com más companhias”. Ou muito me engano ou essas eram as maiores preocupações de uma mãe de crianças e adolescentes nos anos 70.
Na década seguinte, meus irmãos mais velhos já haviam saído de casa e tocavam suas vidas como adultos quando começaram os primeiros sinais de que os perigos que rondam os adolescentes estavam ficando um pouco mais complexos.
Faço parte da última geração que iniciou sua vida sexual sem que o perigo da Aids fosse uma presença concreta. Sei disso porque a Aids tem alguns marcos históricos que a situam no tempo – as primeiras mortes de ídolos internacionais, depois os ídolos brasileiros, depois os conhecidos, e por fim alguns amigos.
Nos últimos 20 anos, a lista de medos dos pais não parou de aumentar, mas é mais difícil situá-los no tempo. Quando os pais começaram a ter medo que os filhos morressem em acidentes depois de festas em que a bebida é distribuída de graça?
Quando começaram a se preocupar com assaltos, balas perdidas, seqüestros-relâmpago – tanto e a tal ponto que garotos de 18 ou 19 anos de classe média são proibidos de caminhar duas quadras até o colégio e um passeio de ônibus é encarado como uma aventura?
Quando as mães começaram a alertar as filhas para o risco de se deixarem filmar por um namorado ou “ficante” porque as imagens podem ir parar na internet? É difícil estabelecer as datas. O que todo mundo sabe e sente é que o lote de medos da nossa época parece engordar a cada nova temporada.
As preocupações razoáveis acabam se misturando com os delírios paranóicos, e o resultado é que a paternidade vai sendo associada cada vez mais a um estado de sobressalto permanente – desafiando o talento de quem se esforça para criar filhos independentes e corajosos.
Quando, daqui a 30 anos, resolverem estudar a minha geração, a última a viver a adolescência em uma grande cidade sem associar sexo com doenças e sem medo de andar na rua, se eu ainda estiver por aí, vou contar como era bom reclamar que o pai era assim, que a mãe era assado e crescer acreditando que nossos maiores problemas estavam dentro de casa – e que as ruas estavam aí para que a gente aprendesse a atravessar.
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