quarta-feira, 26 de novembro de 2008



O mundo é um moinho

"O mundo é um moinho" talvez seja uma das canções mais bonitas já feitas no Brasil. É de autoria de Cartola, que, morando na favela, fez poesia da melhor qualidade e compôs músicas em que melancolia e força lírica formam um par indissociável.

Na primeira estrofe da letra, a forma "ainda é cedo" tem o sabor de uma réplica, não é mesmo? É como se pressupusesse que algo foi dito antes. Afinal, trata-se quase de uma frase padronizada, usada em quase cem por cento das vezes em que uma visita diz que vai embora.

Nós, educadamente, replicamos: Ainda é cedo. Diríamos então que já de início a letra pressupõe um interlocutor, indicado ao longo do texto com vocativos: "Ainda é cedo, amor"; "preste atenção, querida"; "Ouça-me bem, amor".

A julgar pelo "querida", pelo "resolvida", trata-se de uma mulher. Não ouviremos em nenhum momento a voz dessa mulher, pois, se isso acontecesse, teríamos um diálogo, e a forma da canção lírica poderia resvalar para uma forma dramatizada, quase teatral.

A repetição enfática dos vocativos acaba por indicar o empenho com que se busca prender a atenção da interlocutora, prestes a cair no mundo.

Esse empenho é de tal ordem que chega a ter cara de conselho, ou mais do que isso, de sentença, a começar pelo título. O mundo é um moinho é uma espécie de frase sentenciosa, dita por alguém que certamente deve ter perdido um pouco de si mesmo nas pás desse moinho.

A experiência acumulada legitima o conselho, daí este ter sabor de profecia, digamos assim, o que é marcado pelo futuro do presente: "não serás mais o que és", "o mundo (...) vai triturar seus sonhos", "vai reduzir as ilusões a pó", "tu herdarás só o cinismo". Parece mãe rogando praga, não é?

Além do futuro, o presente do indicativo de valor atemporal, comum em provérbios, também é usado: "Em cada esquina cai um pouco a tua vida".

Não é que isso já esteja acontecendo, já que a moça está ainda para partir. No entanto é uma fórmula lapidar, que sintetiza uma verdade. Ninguém passa ileso pelas esquinas da vida.

Mas você acha que a letra é no fundo, no fundo, uma praga de mãe (ou de pai, ou de amante?). Pois é, tudo depende do contexto. Formas tão carinhosas como "amor", "querida" de certa maneira embalam, acarinham o interlocutor, do qual, no entanto, não se escondem as verdades desse mundo.

Os verbos e expressões ligados à corrosão que a realidade opera sobre os sonhos são bastante violentos: triturar, reduzir a pó, estar à beira do abismo. Mas, como dissemos, a verdade é revelada carinhosamente , se assim podemos dizer. Não só pela ternura dos vocativos, mas pela ternura da melodia mesmo.

A música é doce e melancólica e como que mostra a inutilidade do conselho. Ninguém escapa ao moinho, por mais que queiramos proteger aqueles que amamos.

O saldo da aventura pelo mundo é triste: cinismo, desilusão, perda de identidade: "Não serás mais o que és". O mundo nos aparta de nós mesmos.

Como consolo e promessa de um mundo melhor, resta-nos a arte. Que a música de Cartola nos proteja.

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