sábado, 26 de fevereiro de 2022


26 DE FEVEREIRO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

LIBERDADE

A palavra liberdade é uma das mais maltratadas por discursos e ideologias modernas. Ainda pior é o caso da própria liberdade, pois sem uma correta definição é difícil defender e conquistar este grau maior da condição social. É preciso remontarmos ao fundamento da palavra e das tradições que a moldaram para a partir da origem atualizar-se o conhecimento, pois muitas marcas genéticas preservam-se e esclarecem significados. Mas você pode começar perguntando-se, para logo dialogarmos com dados da história: o que é liberdade?

No mundo greco-romano, o sentido de liberdade estava vinculado ao seu oposto, a escravidão: ser livre era não ser escravo; é este o sentido essencial de liberdade e dele decorrem todos os demais. A sociedade coisificava seres humanos cativos e diante deles uma classe superior, com narcisismo egoísta, afirmava sua liberdade e sua autoimagem de superioridade. 

Foram mais de mil anos de escravismo, e essa base jurídica e econômica tornou-se poderosa matriz de vocabulários e ideologias, tendo como base o contraste entre escravidão e liberdade. As mesmas condições repetem-se nas sociedades escravistas do Novo Mundo entre os séculos XVI e XIX, como apontou Moses Finley no livro Escravidão Antiga e Ideologia Moderna (original de 1980, traduzido em 1991). Após a abolição da escravidão, a tradição escravista perdurou sob a forma de preconceitos e de relações de exploração do trabalho; a desigualdade social agravou-se tanto que se tornou um quadro de iniquidades estruturais, em que parte da população nasce condenada a viver em condições comparáveis às dos escravos antigos, senão piores. 

Conclui-se que em nosso mundo a população cativa é formada por miseráveis e que a defesa da liberdade começa e se realiza como combate à miséria. E se entendermos o cativeiro em suas dimensões culturais, veremos que a luta pela liberdade é a luta pela educação e pela emancipação moral, pelo combate à ignorância e às farsas que mantêm aviltada tanta gente em nosso país.

Nesse ponto aparecem os abusos da palavra liberdade, a começar pela usurpação liberal, que finge defender a liberdade quando de fato quer a autonomia desregulamentada do capital e sua hegemonia sobre as relações sociais. Na ideologia liberal, há não apenas a obsessão hipócrita contra o Estado, o ataque à esfera pública e a ganância privatista, mas também o cruel desdém com a iniquidade e o absoluto descaso com o combate pela liberdade dos que mais dela precisam, os miseráveis. Aliás, você já viu algum liberal ou seus fóruns e institutos combater o que persiste de trabalho escravo? 

Outro uso abusivo da palavra é supor que liberdade é dom do indivíduo alheio a normas - faz o que quer, libido livre. Assim chega-se ao absurdo de supor que liberdade é ter dinheiro e comprar armas ou contrariar campanhas de saúde pública. O pior dos horrores, porém, é vermos a palavra liberdade na boca suja de um tirano que só quer ver-se livre da prisão que merece, com sua prole delinquente. Livremo-nos desta chaga, e lutemos, sempre, por liberdade sem escravos, e pela felicidade emancipada.

FRANCISCO MARSHALL

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