sábado, 12 de fevereiro de 2022


12 DE FEVEREIRO DE 2022
J.J. CAMARGO

QUANDO OS PAPÉIS SE INVERTEM

Ele foi admitido no setor de medicina interna com sinais de infecção não controlada, com febre persistente e dor abdominal. Se um quadro infeccioso sempre assusta pela imprevisibilidade, quando esta situação é transferida para um paciente imunodeprimido o risco cresce exponencialmente. Pois esse cenário envolvia o Evandro, um homem de 50 e poucos anos, transplantado de rim aos 29.

Depois de uma melhora inicial com o uso de antibióticos, iniciou um quadro acelerado de septicemia, que, agora já se sabia, fora provocada por uma extensa diverticulite.

O quadro infeccioso generalizou-se e, nessa condição, o envolvimento pulmonar é uma complicação quase inevitável e associada a alta mortalidade.

Apesar do uso de doses crescentes de oxigênio por meio de máscaras de alto fluxo, o Evandro passou a exibir sinais de fadiga ventilatória, decorrente do esforço progressivo de manter-se respirando. Quando chegou ao limite, com queda temerária da oxigenação, a intubação tornou-se obrigatória. Ele, que até então se mantinha submisso às recomendações do intensivista, quis conversar com o especialista responsável pelo transplante e pelos vários anos de cuidados subsequentes.

A esta altura, o nefrologista, relator dessa história, fez um parêntese para comentar que usualmente tornava-se amigos dos pacientes pelo carinho que lhes dedicava, mas também e muito pela necessidade de acompanhamento perene, vivessem o quanto os dois, médico e paciente, vivessem. Depois de uma pausa, acrescentou que o Evandro era um paciente especial, por atributos de confiança, generosidade e gratidão ilimitados.

Com esse estado de espírito, o nosso doutor acelerou o passo para socorrer um dos seus queridos. Ao entrar na Unidade de Terapia Intensiva, encontrou o amigo que, apesar de arfante e sudorético, conseguiu sorrir ao estender-lhe a mão arroxeada.

Então inicia-se um diálogo que mistura em doses generosas confiança, angústia, desespero por continuar vivendo e medo de não conseguir:

- Meu querido doutor, tu achas que esta máquina vai me ajudar?

O medo de que já fosse tarde demais se diluiu na afirmação vigorosa:

- Claro que sim. Tu vais poder descansar, e com a oxigenação garantida teremos o tempo de ver os antibióticos funcionarem.

E então, com tudo explicado e coerente, veio a pergunta inesperada: - Doutor, e eu vou morrer?

Quem já viveu esta situação sabe o quanto custa manter a esperança, quando o som das palavras já não soa verdadeiro e o único impulso é abraçar. E foi isso que o Ivan Antonello, um desses médicos para ser copiado, fez. Mas ao sentir o corpo do amigo soluçando no abraço de náufrago, não conseguiu segurar o seu próprio choro. E então, como só pode ocorrer em relações humanas de intensidades proporcionais, inverteram-se os papéis. E o paciente assumiu o comando:

- Não chore, meu doutor. Lá atrás, quando falaram que meu rim não tinha jeito, sim, eu estava morrendo de medo. Afinal, eu só tinha 29 anos e dois filhos pequenos. Agora, vivido este tempo que o seu transplante me presenteou, meus filhos tornaram-se adultos autônomos, e um deles até me deu um netinho, o maior presente da minha vida. Então não chore, doutor, nós somos uma dupla de sucesso!

Quando a intensidade afetiva rompe a barreira de uma pretensa hierarquia, não mais surpreende que o paciente amoroso possa, no limite da gratidão, ser médico do seu médico.

J.J. CAMARGO

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