11 DE FEVEREIRO DE 2022
EDUARDO BUENO
A SEMANA QUE MUDOU O BRASIL
Corria o ano 366 da deglutição do bispo Sardinha, e o os canibais estavam de volta. Famintos, queriam o fígado de Ceci e de Peri. Queriam devorar o Guarani - em prosa e verso. Planejavam trancafiar Castro Alves no navio negreiro, crucificar Vitor Meireles na primeira cruz e esquartejar Pedro Américo, como o próprio fizera com Tiradentes. E queriam incomodar a burguesia. A burguesia adormecera sobre sacos de café e dinheiro, como gato de armazém? Então, era preciso despertá-la, de preferência com barulho. Nem que fosse o som das vaias, dos "relinchos e dos miados".
E é por isso que, sozinho no meio do enorme palco, o poeta gritava: "Eu insulto o burguês! O burguês-níquel! O burguês-burguês! A digestão bem feita de São Paulo! (...) Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares. Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados (...) Fora! Fu! Fora o bom burguês."
Fora, sim: a plateia enfim ecoava o poeta. O poeta tímido e pacato, que desferia aquela bofetada no gosto do público. E o público ainda havia pago 20 mil-réis para ouvir aqueles poemas sem pé nem cabeça, escutar aquelas notas dissonantes, ver aquelas pinturas manchadas? Era quarta-feira, 15 de fevereiro de 1922. Palco? O Teatro Municipal de São Paulo. Poeta? Um tal Mário de Andrade (escudado por Oswald de Andrade e pela música de Villa-Lobos, pelas pinturas de Anita Malfati). Evento? A Semana de Arte Moderna.
O Brasil nunca mais seria o mesmo após aqueles dias de vertigem e vaias no palco do mais refinado teatro de São Paulo. A semana, que começara no dia 13 de fevereiro, uma segunda-feira, e se encerraria na sexta, dia 17, apresentou ao país seus "neotupis". E eles estavam dispostos a comer o bispo, deixar a Pauliceia desvairada, redescobrir Pindorama na selva das cidades, parir Macunaíma à sombra das bananeiras em flor. Queriam ser negros e índios, mas também queriam que o novo mundo fosse admirável e industrial. Queriam acabar com o "passadismo" e abraçar o futurismo; queriam a vanguarda, mas não a vã glória. E para isso, contaram com o apoio da... burguesia. Ou ao menos da alta burguesia, representada por Paulo Prado, o riquíssimo cafeicultor que bancara o evento, e pelo diplomata Graça Aranha, então o brasileiro mais conhecido na Europa.
A Semana foi só o começo. A ela seguiram-se o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924), o Manifesto Antropofágico (1928), a pintura onírica e hipnótica de Tarsila do Amaral - e tudo de rebelde, revolucionário e inovador que a arte brasileira produziria a partir de então, do Cinema Novo à Tropicália, das angulosas esculturas de Brecheret à dura poesia concreta das nossas esquinas, do Teatro Oficina ao Teatro do Oprimido, da Bossa Nova ao velho rock paulista.
Foi há exatos cem anos. Mas ainda parece que foi hoje.
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