26 DE FEVEREIRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS
Carta para a tela em branco
De início, peço desculpas pela violação. Você começa agora a ser invadida pelas minhas palavras, que esparramo sobre o teu vazio, enquanto enfrento o meu também.
Tela, você não foi a primeira. Antes de você, eu me relacionava com a folha de papel em branco, que colocava numa máquina de escrever manual, logo substituída por uma máquina elétrica, até que me adaptei em definitivo ao computador. Já naquela época, ficava com a expressão facial que estou neste momento: tá, e agora?
O fato de estarmos instaladas em um universo virtual não muda nada. O desafio continua exatamente o mesmo, toda semana, há quase 30 anos, isso sem contar as ocasiões em que precisei de ti para escrever poesia ou ficção. Mas nada de ciúmes, crônica é nossa relação estável e desde já te dedico esta, que vem somar-se a outras duas mil e tantas. Raras, raríssimas vezes cheguei na tua frente sabendo com exatidão o que queria dizer, e mesmo quando havia foco e intenção, o texto saía diferente do planejado, porque a gente começa escrevendo de um jeito, se dando liberdades (percebe como alterno os pronomes?), até que o espaço termina e é preciso concluir tudo às pressas, sabe-se lá como.
Nem acredito que estou no quarto parágrafo e nem entrei no assunto - pois é, ainda não decidi. Estou aqui puxando conversa, desenrolando o famoso fio da meada que se transformará em nova linha, e depois em outra linha, e mais outra, a fim de completar essa branquitude aí embaixo que me aguarda (mas que para o leitor foi entregue preenchida, claro). Daqui onde estou, o drama permanece: o que vou inventar no parágrafo seguinte? Sugira algo, vamos lá, o pessoal está reparando.
Inventei de desabafar contigo, então não tem volta, não vou deletar o que já foi escrito, não passarei o dia inteiro presa a essa aflição. Indo direto ao ponto: você me intimida. Não adianta querer me lembrar da minha suposta experiência, ela não conta, é sempre como se fosse a primeira vez. Preciso agradar aos leitores, seja fazendo graça, seja refletindo sobre algum acontecimento ou simplesmente dividindo uma angústia particular, só que não pode ser de qualquer maneira, a leitura tem que resultar prazerosa, senão o povo se manda, vai ser uma debandada. A concorrência só aumenta e dá trabalho, são muito bons os jovens colunistas. E você faz o que para me ajudar? Segue altiva como uma lâmina. Como se dissesse: te vira, mas seja rápida, falta só um restinho de página.
Por fim, chego aqui, ridícula como os que escrevem cartas de amor. Sim, sua tola, amor. Vivo pra ti, não consigo te abandonar. Semana que vem estarei novamente arrancando os cabelos na tua frente e suplicando: por favor, em vez de se fazer de difícil, me inspira, vai.
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