segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022


28 DE FEVEREIRO DE 2022
DAVID COIMBRA

A dor

As pessoas superestimam o sofrimento. Alguém está lutando contra uma doença ruim e elas se compadecem: é um guerreiro, é um herói. Sei de onde vem isso: do cerne duro do Cristianismo. Segundo a interpretação da igreja, todo o sofrimento de Jesus na cruz era necessário e inadiável. Por que ele tinha de passar por aquilo? Era um sacrifício. Jesus suportou humilhações, espancamentos e tortura para nos livrar dos pecados. Morreu por nós.

Assim, o cristão sempre vê a dor como um sacrifício. O cristão adora se sacrificar. Está doendo por algum motivo. No final você vai aprender e crescer com essa experiência. Alguns que sofrem acreditam nisso. O muçulmano que se explode pensando em receber 72 virgens e toda a cerveja do mundo também acredita que o sacrifício vale a pena.

Já o soldado, se volta para casa com uma perna mutilada, digamos, se torna um homem respeitado pelo resto da vida. Ele se sacrificou em nome da pátria.

O imbecil que pega em armas para defender uma ideologia e derrubar um governo que ele acha injusto, também. Até os adversários reconhecem sua bravura.

Agora, um cara que está doente e sente dor, qual é o mérito dele?

Isso aconteceu comigo nos últimos dias. Passei um tempo com dor, mas é irrelevante, não se assuste, nem vou aborrecer o leitor com pormenores. Eu não pensava, como muitos pensam: "Por que comigo?" Não. Essa é uma pergunta tola. Afinal, criancinhas estão chorando na Ucrânia e pais desesperados sabem que seus pequenos podem sofrer amputações terríveis que os marquem para sempre, se antes não vier a morte de todos numa explosão russa.

A pergunta que faço é: que vantagem eu tenho. Passo por tudo isso e não levo nada? Olha lá o soldado que perdeu a perna em batalha. Ele é venerado e digo que merece a veneração.

Mas a dor anônima e vulgar, como a minha? Ela não serve para nada, ela não produz nada para a sociedade. Ela só fica ali, incomodando um único indivíduo.

Aí as pessoas cometem o erro de achar que a dor do seu amigo é uma dor com propósito. "Você vai mudar", elas dizem. "Essa dor, no fim, vai ser boa, e você vai ver o mundo de outra maneira."

Não é. Não é boa. 

Não haverá evolução alguma, você voltará à convivência das pessoas como um trapo emaciado e emagrecido que terá medo de voltar a tomar cerveja. É isso. Você passou por tudo aquilo e não houve glória, não houve honra. O mundo é injusto.

DAVID COIMBRA

Nenhum comentário: