segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022


21 DE FEVEREIRO DE 2022
CÍNTIA MOSCOVICH

O belo luto de Noemi Jaffe

Dona Lili sobreviveu a um campo de concentração, veio para o Brasil, casou, teve três meninas e ficou viúva. Quando morreu, aos 93 anos, teve início, em especial para uma das filhas, a escritora Noemi Jaffe, o impossível caminho das separações. Lili: Novela de um Luto é o relato dessa travessia sem margens e de todas as tentativas para não esquecer - a memória, que faz viver os que são lembrados, foi recebida como dever do coração.

Espécie de diário, mas classificado na ficha catalográfica como ficção, o livro se inicia na cena comovente em que a filha abre as pálpebras mortas da mãe e descobre os mesmos olhos, ainda que ocos de vida. Esse contato com o corpo de um morto - um dos grandes interditos do judaísmo - marca o primeiro impulso da narradora no sentido de impedir que a ausência subtraísse a existência da mãe. Noemi vai ensinando que a escrita não é sublimação do sofrimento ou estratégia para mitigar a dor, senão para fixar os dois, sofrimento e dor, porque ambos fazem parte do ato amoroso. 

No caso de Noemi e dessa narradora que parece sinceramente surpreendida pela morte, mesmo que a mãe tenha vivido por quase um século e enfrentado uma longa enfermidade, escrever significa apreender a figura que, a partir dali, já não mais está, função que as palavras mais uma vez apenas tentarão cumprir na débil imitação da realidade. É um esforço arrasador, ainda que vão, de um lirismo que o leitor acompanha perplexo.

Com referências a Austerlitz, de Sebald, e com possível inspiração em Diário de Luto, de Roland Barthes, e em De Amor e Trevas, de Amós Oz, Noemi relembra as comidas da mãe, as dificuldades com o português e as peripécias imigrantes. Ao fim, se tem em mãos, e isso nem a ficha catalográfica desmente, um texto de tom memorialista e confessional, que a autora nos entrega como uma joia de sua intimidade e daquela sabedoria forjada diante da afronta máxima da morte. A todos os que perderam ou perderão, o livro fica como sugestão do necessário reconhecimento da própria dor e, essencial, da dor alheia.

CÍNTIA MOSCOVICH

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