19 DE FEVEREIRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS
Não existe história muda
A verdade sempre aparece. Poderia resumir com essa frase o novo filme de Pedro Almodóvar, o essencial Mães Paralelas, ainda que o verbo resumir não combine com a abrangência cinematográfica desse cineasta espanhol que tanto perturba quanto encanta. Mais uma vez, Almodóvar traz à tela uma sequência de emoções que gritam como os tons de verde, vermelho e amarelo que vestem suas atrizes e cenários. Porém, sem melodrama ou subterfúgios: ele simplesmente usa o amor e a ética para despir nossa pele e revelar o esqueleto que nos compõe.
O filme apresenta Janis, 40 anos, e Ana, 17, duas grávidas que se conhecem ao compartilharem o mesmo quarto na maternidade. Ambas solteiras, estão prestes a parir suas primeiras filhas. Mas esse encontro casual vai parir também um segredo que precisará ser desenterrado para que a vida se mantenha digna.
Uma história paralela complementa o drama particular das duas mulheres. Janis, vivida bravamente por Penélope Cruz, é uma fotógrafa que pede ajuda a um arqueólogo para localizar os restos mortais de seu bisavô e de outros militantes políticos que foram assassinados durante o franquismo e jogados em valas comuns, sem identificação. As duas histórias sobrepostas conduzem a uma mesma reflexão: nenhuma pessoa e nenhum país consegue pleitear um futuro sem antes sepultar seus fantasmas.
Hora da entrada em cena de outra personagem. A mãe da jovem Ana, por mais bem intencionada que esteja em ajudar a filha inexperiente a criar seu bebê, permanece envolvida demais com sua própria carreira e não consegue participar do grande evento emocional que o destino reservou para a sua família. Mantém-se de fora, isolada, ausente. Não é à toa que, durante uma conversa, ela se declara apolítica. A informação, aparentemente banal, mostra que a neutralidade impede a comunhão necessária para se avançar. Ou estamos juntos, ou não estamos em lugar nenhum.
Almodóvar é tudo, menos apolítico, como atesta sua produção cinematográfica, e Mães Paralelas reforça seu posicionamento libertário. Escreveu um roteiro que poderia render uma telenovela com meses de duração e inúmeras reviravoltas, mas bastam duas horas para ele dar seu recado de forma enxuta, sem desvios, sem desperdícios, abordando temas fundamentais como feminismo, ancestralidade, sexualidade e a importância de nos engajarmos por uma realidade às claras e não mantida no escuro. Se essa discussão segue em pauta na Espanha, mais ainda no Brasil, que atravessa uma onda retrógrada que em vez de abrir caminhos, os fecha; em vez de defender as diferenças, as condena; em vez de trazer à tona a verdade, as enterra.
Depois de uma cena final de impacto, Almodóvar acerta em cheio ao assinar sua bela obra com as palavras contundentes de Eduardo Galeano: "Não existe história muda. Por mais que a queimem, por mais que a quebrem, por mais que mintam, a história humana se recusa a fechar a boca". Se é luz que queremos, hablemos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário