sábado, 23 de julho de 2016


23 de julho de 2016 | N° 18589
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A SOLIDÃO É UMA PAREDE DE TIJOLOS


O que durante muitos anos não passou de uma impressão, dessas que alimentam a chamada sabedoria popular, foi cientificamente consagrado em uma pesquisa recente, chancelada pela Universidade de Harvard: a qualidade das relações sociais é que define a chance real de que alguém envelheça feliz. Muito mais do que os níveis de colesterol ou o controle rigoroso do perímetro abdominal.

E a construção de relações afetivas sólidas, ou não, começa inexoravelmente no menor dos nossos universos: a família. O que levamos para aplicação nas rodas sociais externas tem a marca do afeto edificado em domicílio. Por isso é tão suspeita a atitude dos que só se revelam solícitos e generosos com estranhos.

O senhor RR era um desses tipos ranzinzas com os seus, e de alguma influência política na comunidade. A gentileza externa, se descobriu depois, era apenas uma fachada para facilitar-lhe o acesso ao poder. Filho de um pai que herdara e pulverizara uma grande fortuna, cresceu com um sentimento de revolta contra os que haviam comprado o espólio da família. As pessoas mais próximas comentavam que ele parecia ter feito um pacto consigo mesmo de resgatar o patrimônio perdido, custasse o que custasse. 

Quando o conheci, tinha 78 anos e era muito mais rico do que qualquer ancestral jamais tinha sido. A cara enfarruscada antecipava que nada do que conquistara afrouxara as amarras da amargura. Nunca consegui vê-lo sorrir. Temi que tivesse desaprendido, se é que alguma vez soubera. Depois de um tempo, me acostumei com ele assim, porque afinal nada mesmo do que ele dizia ou argumentava tinha a menor graça.

Houve uma grande dificuldade para contatar algum familiar quando precisamos que alguém assinasse o consentimento informado para os procedimentos invasivos, indispensáveis na avaliação da operabilidade do seu tumor de pulmão. Ficou claro que ele tinha produzido uma prole de superocupados, sem nenhum tempo a perder, pelo menos não com ele. 

O Euclides era um negro velho com uma catarata visível e um ar resignado, e era a figura que mais se aproximava da ideia de família. Dormia sentado numa poltrona sempre postada atrás do ângulo de visão do seu chefe, mas atento a qualquer gesto ou ruído. Na noite anterior à cirurgia, o paciente fez um pedido típico dos solitários: “As informações referentes a minha doença devem ser repassadas exclusivamente a mim, pelo menos enquanto eu estiver vivo!”. Dada a minha dificuldade de comunicação com os mortos, aquilo me pareceu bem razoável.

Por meio do Euclides, soube que a ausência de qualquer membro da família no dia da operação se explicava por uma viagem programada havia meses e que, no dia anterior, levara para a França todos os filhos que lá se encontrariam com a mãe para a comemoração dos 70 anos dela. Pelo jeito, a ausência dele naquela festa não representaria um trauma insuperável para os viajantes. A parede que os separava tinha muitos tijolos.

Na última conversa pré-operatória, ainda escorreu um resíduo de rancor reprimido: “Traga todos os papéis de autorização que precisar para completar o seu serviço. Faça o que tem de ser feito e preste contas somente a mim!”. Do alto da sua prepotência, nenhum indício de medo ou de afeto, só rigidez e solidão. Esta combinação que, de tão maligna, diminui o impacto do anúncio de um câncer, diluindo-o no caldeirão do abandono, onde até a morte desejada se justifica.

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