23 de julho de 2016 | N° 18589
ANTONIO PRATA
A TOCHA
Quase um ano atrás, me ligou o Naief, editor de Esportes da Folha. A Coca-Cola tinha disponibilizado uma vaga no revezamento da tocha olímpica, em Itu: eu toparia correr e escrever uma crônica? Topei. Naquelas priscas eras, pré-desabamento da ciclovia, pré-microcefalia, pré- estado de calamidade pública no Rio e de desalento geral no Brasil, minha maior preocupação era com um possível tombo.
Não queria ter que alterar o meu currículo: “Antonio Prata é paulistano, escritor, roteirista e extinguiu a milenar chama do Olimpo em julho de 2016, ao pisar no próprio cadarço, caindo de cara numa poça d’água na Rua dos Andradas, 113, Itu. Atualmente se dedica ao seu primeiro romance e à sua quinta defesa num dos inúmeros processos movidos pela Coca-Cola”.
Conforme a data foi se aproximando, contudo, e as notícias sobre os Jogos foram desviando do esporte para as suspeitas nas obras, o desleixo com o legado, o descumprimento das metas ambientais, comecei a ficar ressabiado. Será que carregar a tocha não seria dar apoio ao descaso, à corrupção, não ajudaria a dourar a pílula das eternas maracutaias nacionais?
Estava imerso em tais caraminholas, lá em Itu, na véspera do revezamento, quando meu pai telefonou. Ao saber que eu carregaria a tocha, ele ficou eufórico. Diria, até, emocionado. “Por que você não me falou antes?! Eu ia aí te filmar!” (Meu pai mora em Florianópolis e só costuma sair da ilha pra casamento ou velório.) Expliquei minhas reticências. “Meu filho, que isso?! É Olimpíada! Essa tocha não é do PMDB, essa tocha é de Zeus! Do Cassius Clay! De Apolo! Do João do Pulo! Do Jesse Owens! Deixa de ser besta, vou ligar pro Chico em Sorocaba e ver se ele pode ir aí te filmar!”
Só entendi o meu pai no dia seguinte, no ensaio para o revezamento, quando a competentíssima Frances, da organização do Rio 2016, chamou dois condutores à frente da roda: Fernando Telles, 76 anos, do time brasileiro em Melbourne, 56, e Roma, 60, nos saltos ornamentais, encenou o condutor que receberia a chama; Stephanie Forcin, 18, lutadora de tae-kwon-do, treinando para uma vaga em 2020, encenou a que passaria; um nó se formou na minha garganta e um narrador esportivo se instalou na minha cabeça, tão piegas quanto verdadeiro: “É a experiência e a vontade! É a conquista e a esperança! É o ontem e o amanhã construindo, juntos, o hoje, em Itu!”.
O nó virou choro minutos mais tarde na Rua dos Andradas, 113, ao receber a chama do Rogério Brito – peso-pena que representou o Brasil em Barcelona, 92, e Atlanta, 96, apesar de não ter dinheiro para comprar os próprios tênis e ter de treinar com um par emprestado pelo técnico. A Olimpíada é dessas pessoas, compreendi, não dos ratos que enchem a pança e o bolso desviando dinheiro de estádio, estatal, merenda e hospital.
Durante as quase quatro semanas dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos veremos os melhores atletas do mundo competirem em pé de igualdade, sem fraude em licitação, sem apadrinhagem, caixa 2, golpe ou estelionato. Espero que nos sirva de exemplo. Espero, mais ainda, que ao nos comover com as inúmeras histórias e conquistas dos nossos setecentos e tantos esportistas, possamos fazer, ao menos em parte, as pazes com o Brasil. “Que a tocha nos ilumine!”, diz o locutor, na tribuna de imprensa do meu córtex. “Que a tocha nos ilumine!”
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