segunda-feira, 4 de julho de 2016



04 de julho de 2016 | N° 18572
PAULO GERMANO

O homem da rua

Tenho pena do homem que vejo pela janela. Ele se prepara para atravessar a Avenida da Azenha, de costas para mim, próximo à Rótula do Papa. Não sabe que do terceiro andar acompanho sua marcha manca, sua dificuldade para empurrar um carrinho de supermercado vazio e arrastar pelo asfalto dois pés bem tortos. Não sei se é uma deficiência ou uma grave lesão. Sei que aquilo também lhe atinge as costas, encurvadas como um quebra-molas, mas ainda assim ele segue andando, devagarinho, agora quase no meio da rua.

A sorte é que já passa da meia-noite, não há mais tantos carros. Porque não consigo imaginar no mundo inteiro, pelo menos neste momento, alguém mais lento e vulnerável. Que homem magro. Deve ter a minha idade. Pelas roupas – uma bermuda frouxa que lhe expõe o início das nádegas e uma camiseta rasgada –, suponho que viva na rua. Quando enfim alcança o canteiro central, após uma operação custosa para subir o carrinho no meio-fio, eu vibro sozinho. Torço por ele daqui.

Seu alvo é uma sacola plástica atirada na grama, e tomara que tenha comida, tomara que alguém tenha deixado ali alguma coisa para um andarilho com fome. Ele apoia a sacola no carrinho, examina o conteúdo e leva algo à boca. Antes que eu sorria, cospe tudo e devolve a sacola ao chão.

Onde é que ele vai passar a noite? A quem esse homem pode recorrer? Porque, se fossem minhas pernas naquele estado, sei que agora eu estaria na cama. Se eu voltasse para casa naquele horário, sei que me receberiam com um beijo. Se me sentisse infeliz ou talvez sem rumo, sei que meus amigos ofereceriam apoio. São constatações sentimentaloides, meio óbvias, mas parece inevitável concluir que tudo isso – cama, casa, amor, amigos – não passa do básico. Como um homem enfrenta o mundo sem nada disso? Como alguém suporta a vida sem o básico?

Enquanto ele furunga em uma lixeira, já do outro lado da Azenha, noto que ninguém o nota. Vejo meia dúzia de pedestres cruzando sua frente e me culpo por pensar que, se ele fosse um cachorro, poderia ter mais sorte: talvez se comovessem com aqueles pés retorcidos, talvez lhe dessem um cafuné.

Mas ninguém faz nada. Muito menos eu, que agora assisto àquele homem sumir de vista lentamente, carregando consigo o carrinho vazio e o meu respeito. Um respeito inútil, que não me impede de fechar a janela e depois dormir.

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