11 de julho de 2016 | N° 18578
L. F. VERISSIMO
Shakespeariamente
Shakespeare: Quem sois, que me acordais de um sono tão longo, que nas pálpebras pesa a remela?
Elizabeth: Sou a rainha. Shakespeare: Elizabeth?
Elizabeth: Ela.
Shakespeare: Então eu não morri, e 400 anos de túmulo foram o sono de um segundo, e o declínio da Inglaterra, o devaneio cruel de um cérebro vagabundo?
Elizabeth: Não, vos suplico, não erreis a dedução. Sou Elizabeth, sou rainha, mas não sou aquela, não. A Inglaterra está mudada, o mundo, uma anarquia, mas ainda vive a monarquia.
Shakespeare: Agora vejo com clareza, sois muito diferente. Uma rainha assim, sei lá, com cara de tia da gente.
Elizabeth: Mas o reino é o mesmo, a mesma ilha coroada. A mesma raça de reis, e a coroa, o mesmo fardo. Só nos falta... Shakespeare: Já sei, um bardo. Não quereis meus ossos nem minha carne, não é a ressurreição que me acenas. Quereis meu espírito – e minha pena.
Elizabeth: Sim! Lembrai ao mundo do que somos feitos, um império sem defeitos. O mundo já tremeu sob as nossas botas, hoje somos alvos de chacotas.
Shakespeare: Contai-me, rainha, tudo que inspire minha verve. Para um bardo, qualquer coisa serve. Quem fez o que com quem, sem esquecer um pajem. Quem foi incompetente, quem só fez bobagem.
Elizabeth: Seu nome é Cameron, meu primeiro-ministro. Ou, como nós o chamamos em casa, primeiro-sinistro.
Shakespeare: Ah, pressinto um personagem. Conspira, transpira, se esgueira? Queima com a chama terrível do eterno enjeitado? Elizabeth: Não, é até meio apagado.
Shakespeare: E os príncipes? Estes inspiram a nação? Qual deles é o guerreiro? Qual o alegre fanfarrão? Algum filósofo? Algum esteta? Pelo menos um mau poeta? Qual o carneiro, qual o lobo?
Elizabeth: Todos puxaram ao pai, que não faz nada o tempo todo. Shakespeare: Nessa corte só tem bobo! Elizabeth: Ajude-nos, bardo, a recuperar nosso esplendor?
Shakespeare: Com esse time? Por favor. Tente Coward, Wilde, Shaw, os três juntos ou um só. Pois os tempos são elizabethanos, mas não são nada shakespearianos.
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