sábado, 23 de julho de 2016


23 de julho de 2016 | N° 18589
ARTIGOS - FLAVIA MORAES*

ASAS ADQUIRIDAS


Dédalo provocou a ira do rei Minos e terminou preso no Labirinto que ele mesmo havia construído a pedido do monarca.

Sabendo que seu cativeiro era intransponível e que Minos controlava terra e mar, com cera de abelhas e penas de pássaros Dédalo construiu um par de asas para logo agitá-las suspenso no ar. Ao dar asas a Ícaro seu filho, Dédalo recomendou que ele voasse nem tão alto de forma que o calor do sol pudesse derreter a cera que prendia as penas, nem tão baixo que o mar pudesse molhá-las.

No final da longa escadaria do número 1.412 da Presidente Roosevelt, me espera um par de asas. São muito significativas e foram planejadas há algum tempo, mas só agora parecem realmente fazer sentido.

O mestre tatuador é mestre também na arte de fazer amigos. Logo fico à vontade e sem piscar me pego falando coisas que ruborizariam até meu terapeuta. Então, entre centenas de sketches de tatuagens que habitam as paredes e o teto do pequeno estúdio, minhas fantasias e mitos vão ganhando vida nos traços do incrível Edu Tattoo.

Dentro de alguns dias, abandonarei mais uma zona de conforto pra seguir novos rumos e realizar um sonho há muito acalentado. Mas tanta ilusão, quando chega, traz junto uma certa nostalgia e uma reflexão recorrente: como encontrar o equilíbrio entre segurança e liberdade?

Com certeza, essa não é uma questão particular, e deve habitar pelo menos um dos corações daqueles que vivem sempre com dois… ou mais.

Ainda ontem, estava saindo de Porto Alegre pela primeira vez pra tentar a sorte em São Paulo, cidade que me reservava uma bem-aventurada carreira. E, sempre na vertiginosa velocidade que só a Pauliceia conhece, a mesma inquietação me assaltava uma e outra vez.

Como saber o momento certo de parar? Quanto custa o tempo que você perde pensando apenas em ganhar? Quanto é realmente necessário acumular? Quanta grana, quantos projetos, quantos prêmios e, ainda, quantas noites sem dormir e finais de semana sem parar?

São questões que podem ficar ainda mais difíceis de responder quando você realmente ama o que faz, quando trabalhar não é um fardo e você literalmente não vê o tempo passar. Mas, paradoxalmente, zonas de conforto são repletas de interrogações…

Interrogações sobre as experiências que você não viverá, sobre os milhões de portas que precisou fechar para dar apenas um passo à frente, sobre todas as coisas que ainda não fez e talvez nunca faça e sobre riscos que podem muito bem ser reais, ou não. Sobre as fantasias que ficarão para sempre adormecidas na sua cabeça, e tudo aquilo do que desistiu para estar onde está agora e também as perguntas, que erroneamente pensou não terem resposta.

É estranho o pouco do universo que conseguiremos realmente ver presos em um único corpo, em um único lugar e em uma única vida. É estranho que qualquer um de nós possa se sentir em casa em um mundo tão desconhecido.

Difícil não pensar no intransponível labirinto de Dédalo.

E então, mesmo sabendo o final da história, escolho ser Ícaro e voar. Nem que para isso tenha que aprender a desfrutar de alguma dor.

– Vamos lá Edu, mande tinta nessa pele!

 *Cineasta flavia.moraes@gruporbs.com.br

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