sábado, 16 de julho de 2016



16 de julho de 2016 | N° 18583 
ANTONIO PRATA

LÁ VOU EU EM MEU EU OVAL

Na semana passada, parado em meio a centenas de motoristas, tomando parte nesta sinfonia da cretinice humana chamada engarrafamento, me dei conta de uma mudança pequena, porém sintomática, na epiderme dos automóveis (ou autoimóveis?): os adesivos desapareceram.

Alguns anos atrás, praticamente todo mundo usava o carro para mandar uma mensagem ao mundo. A bandeira da Jamaica informava aos demais cidadãos que ali dentro daquele Fusca havia um cara que curtia reggae, provavelmente fumava maconha e, entre passar as férias em Berlim ou Itacaré, preferiria Itacaré. O “Je parle”, da Aliança Francesa, informava que ali dentro daquele Uno havia uma garota que curtia Godard, provavelmente usava boina e, entre um piquenique no parque e uma ida ao Playcenter, ficaria com o piquenique. 

“OPTei” informava a todos que o motorista da Variant era petista. “Deus é fiel” informava a todos que o motorista da Brasília era cristão – embora, por anos, eu tenha pensado que a ideia fosse mostrar que Deus era corintiano. Semana passada, porém, olhei para uns 15 carros à minha volta e encontrei um único adesivo, “Di Cunto soluções em logística” – provavelmente dirigido pelo próprio senhor “Di Cunto”.

Me permitem uma rápida sociologia de botequim? (A crônica, assim como o engarrafamento, é um ambiente quase tão propício à sociologia de botequim quanto o botequim). Minha hipótese é que os adesivos foram engolidos pelas mídias sociais. Antes, estávamos soltos na multidão. Era preciso afirmar nossas individualidades no meio da geral. Como não sabíamos quem, ao nosso redor, era católico, maconheiro, cinéfilo, petista ou tucano, o público do nosso marketing pessoal era a cidade inteira, o carro era nosso outdoor particular. Com Facebook, Twitter, Instagram, 

Tinder e que tais, a gente comunica o que a gente é (ou pensa que é, ou finge que é) para os que a gente escolheu. Que se dane o cara do carro ao lado, da frente ou de trás. Meu público, espalhado pelo globo, se concentra na tela do meu celular. (Será coincidência que um dos últimos adesivos a ficar na moda foi o da familinha, a afirmação do núcleo familiar?)

Nos meus dias mais otimistas, acho que essa compartimentação é positiva. Trinta anos atrás, se um cara era o único gay ou o único heavy metal ou o único vegetariano de um vilarejo de 500 habitantes, ele se achava um freak. Hoje, com uns cliques, ele encontra seus pares – no vilarejo ao lado ou do lado de lá do Atlântico.

Nos meus dias mais pessimistas, no entanto, fico me questionando sobre qual será o preço de nos comunicarmos cada vez mais com os nossos semelhantes. Não será essa uma nova forma de vilarejo? O vilarejo dos iguais? Será que essa mesma segmentação que me faz prescindir da opinião do carro ao lado não cria um mundo mais intolerante, mais raivoso, menos aberto à diversidade?

“Lá vou eu em meu eu oval” é um palíndromo da Marina Wisnik. Um frase circular que veste como uma luva – ou como uma uva? – o nosso universo umbigo, onde parece que quem não é igual a mim pode ser trollado, linchado ou atropelado por um caminhão.

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