terça-feira, 12 de julho de 2016



12 de julho de 2016 | N° 18579 
DAVID COIMBRA

Caligrafia é tudo

Uma professora minha do primário, o nome dela era Alba. Ou Alda. Ou seria Olga? Não lembro. Mas lembro de uma frase que repetia sempre: – Caligrafia é tudo.

Seu rosto está anuviado na minha memória. Sua estatura, seu jeito de vestir, tudo o mais sobre a professora é difuso para mim. O que restou em minh’alma foi a visão de seu dedo em riste, espetando o ensinamento com solenidade:

– Caligrafia é tudo.

Por conta disso, caprichava ao escrever um bilhete, que fosse. Desenhava vogais sóbrias e consoantes levemente rebeldes, e fiquei orgulhoso quando meu avô um dia elogiou: – Letra bonita.

Mas, com o tempo, devido à necessidade de escrever rápido, minha letra foi enfeando. Tornou-se apressada como uma sexta-feira. O ó é levantado demais, o a se deita sozinho, o erre parece um vê, o bê não fecha e o e, confesso que tenho certa implicância com o e.

Às vezes preciso demandar algum esforço para entender o que anoto, e olhe que vivo de anotações.

Descobri, portanto, e não sem certa decepção, que a mestra estava equivocada: caligrafia não é tudo.

Mais tarde, já enfrentando as certezas e as acnes da adolescência, alguém, talvez até outra professora, sentenciou: – Datilografia é tudo!

Aí está. O mundo se modernizara. Agora, para se conseguir trabalho, era imperioso bater à máquina com todos os dedos das duas mãos a velocidades vertiginosas de não sei quantos toques por minuto. Havia lendas de secretárias que datilografavam com a rapidez das asas do beija-flor. As pessoas ficavam admiradas quando alguém se exibia:

– Consigo 180 toques por minuto, sem usar Error-ex.

Você, obviamente, não sabe o que é Error-ex. Mas nem vá ao Google – ninguém mais precisa saber o que é Error-ex.

Eu, que o usava muito, tive de fazer um curso de datilografia no então colégio Edmundo Gardolinski, que ficava atrás da goleira noroeste do Alim Pedro. A professora era uma freira meio braba. Ela estava sempre de hábito, nunca ria e passava o tempo todo jurando que ia nos ensinar datilografia a qualquer custo. Sentia medo deste “a qualquer custo”.

As teclas das máquinas eram cobertas de veludo preto, para que não víssemos as letras. O objetivo era datilografarmos sem olhar para o teclado. Foram dias duros. Jamais esquecerei da fórmula: a, esse, dê, efe, gê; cê cedilha, ele, cá, jota, agá.

Acabei me transformando em razoável datilógrafo. Saí do curso acreditando que talvez realizasse o sonho de todas as mães da época: passar no concurso do Banco do Brasil. Mas, para a tristeza da minha mãe, nunca nem me inscrevi no concurso e, assim, por injustiça, não passei.

O problema é que, nos anos 1980, datilografia deixou de ser “tudo”. Sabe o que passou a ser “tudo”?

Cobol.

Não vá ao Google. Cobol é uma linguagem de computação. Era algo importante aprender Cobol. Era... bem... tudo. Meu amigo Fernando Bellissimo, que conhecia o assunto, deu-me de presente um livro sobre Cobol do tamanho da Bíblia, Novo e Velho Testamentos.

Cara, eu tinha que ler aquilo... Mas já não cevava mais ilusões sobre minha capacidade de aprender tudo sobre tudo e, hoje, posso admitir: não li, Fernando. Não li...

No século 21, dizem-me que as mídias sociais são tudo. Snapchat. Twitter. Instagram. Até acredito. No entanto, dia desses, minha impressora estragou e tive de escrever um importante documento à mão. Não havia tempo para imprimir em outro lugar. Devia fazer a coisa naquele exato instante.

Peguei da folha A4, branca e pura como a minha consciência. Finquei os cotovelos na mesa. E pus-me a desenhar as letras redondas, harmônicas, retas como devia ser a vida. Terminado o serviço, tomei o papel com as duas mãos. Estiquei os braços para analisar melhor o resultado. E me congratulei: ficou lindo. Então, depois desses anos todos, lembrei-me da velha Alba. Ou Alda. Ou Olga. E disse para mim mesmo:

– Era verdade. Caligrafia é tudo.

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