sábado, 9 de julho de 2016


09 de julho de 2016 | N° 18577
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

OS INESQUECÍVEIS (1)


De olho no retrovisor e nos números, 32 mil pessoas é a população de uma pequena cidade, e existem centenas dessas por aí. Mas e se esse total representar a experiência cirúrgica de alguém? Não esperem milhares de doenças com apresentações diferentes, porque elas, como se sabe, se repetem e depois de um tempo se tornam monótonas e, às vezes, enfadonhas. Mas, se cada enfermidade foi trazida por indivíduos com trajetórias próprias, já imaginaram quanta história para contar? Com certeza existiram muitos tipos para lembrar, e com tristeza alguns poucos para esquecer, mas os primeiros, representando uma maioria absoluta e compensadora, constituem a memória generosa dessa abençoada profissão.

O Anísio é um homem simples, mas tem aquela infinitude no olhar, típica dos privilegiados que vivem de frente pro mar. Nossa relação começou meio conturbada, depois enterneceu. Ele respirava com sofreguidão, tinha indicação de um transplante e um tipo sanguíneo raro, o que dificultava a obtenção de um doador. Meses depois, foi chamado, veio ao hospital cheio de entusiasmo, mas horas depois recebeu a notícia de que o pulmão era inviável. 

Quando foi novamente convocado, duas semanas depois, ficamos sabendo o quanto se deprimira com a experiência frustrada. Simplesmente disse à doutora que não viria mais porque desistira do transplante. Inconformado, liguei de volta: “Anísio, acho que não estás entendendo. Por uma sorte impressionante, apesar do teu tipo sanguíneo incomum, temos um novo doador em 15 dias e com um pulmão melhor do que o anterior, e fiquei sabendo que desististe! Pois estou ligando para te comunicar que tu vais ser transplantado! O que temos de decidir é se virás sozinho ou se terei de te buscar no Imbé!”.

Houve um longo silêncio, depois um suspiro, e o anúncio: “Estou indo. Por favor, espere por mim!”. Treze anos depois, o Anísio foi convidado para falar no encontro de Natal, que reúne transplantados e candidatos. Começou tímido: “Hoje de manhã, estava correndo lá na praia e recebi uma chamada da Kelly pedindo para falar nesta reunião e fiquei meio assustado porque não sou homem de muitas palavras e não sabia o que dizer”. 

E, então, foi definitivo na apologia da esperança: “Agora, vendo vocês com estes tubos de oxigênio, pensei que podia aconselhar que cumpram tudo o que o doutores recomendarem, que vão conseguir o transplante. E quem sabe um dia desses vocês poderão correr comigo lá na praia do Imbé?!”. A mistura de sonho, esperança e fantasia encheu a sala, e os olhos transbordantes embaralharam as silhuetas. Tudo na medida certa para recomeçar o ano, não importando que, para vários dos presentes, aquele fosse o último. Ninguém mais aceitaria morrer antes da esperança. Não depois daquele discurso.

No ano passado, 15 anos depois do transplante, cruzamos no pátio e ele continuava animado e agradecido. Quando íamos nos despedir disse, meio sem jeito, que queria me fazer um pedido. Precisava ficar um pouco abraçado comigo. Depois de um tempo conseguiu falar para se superar em afeto: “Acho que já chega, captei a energia boa que precisava, e não quero ficar com toda só pra mim”. E saiu com seu passo miúdo, sem olhar para trás. Desconfio que ele sabe que o afeto é um desses sentimentos que só aumenta por divisão. Vou confirmar isto no próximo abraço.

Nenhum comentário: