sábado, 30 de julho de 2016


30 de julho de 2016 | N° 18595 
DAVID COIMBRA

O Estado virou um inferno


Sartre disse que o inferno são os outros, e, de fato, são vocês. As pessoas têm a irritante mania de não querer as coisas que quero que elas queiram e de não fazer as coisas que quero que elas façam. Você pode planejar tudo direitinho, ter as melhores ideias, mas elas vivem tomando suas próprias decisões. Cada qual com suas vontades e seus interesses. Donde, tantos conflitos. Donde, o inferno.

Para haver quereres conflitantes, basta haver outra pessoa. Os casais têm problemas às vezes irremediáveis, e casais são formados por apenas dois seres humanos, imagine. Pense, agora, em uma cidade inteira, ou um Estado, ou um país. Como fazer com que milhares, milhões de pessoas vivam em relativa harmonia?

Essa é, basicamente, a função do Estado. Para isso foi, digamos, “inventado” o Estado: para regular as relações entre as pessoas. E é por isso que a ação do Estado influencia diretamente o espírito dos cidadãos. Corta.

Fiz essa pequena digressão para falar de algo que ocorreu nesta sexta-feira em Porto Alegre.

O dia estava ensolarado e o clima ameno. Um pequeno grupo de alunos e professores fazia uma manifestação na Avenida Ipiranga, em protesto contra o parcelamento dos salários dos funcionários públicos. Eles trancaram o trânsito, como sói acontecer nesses eventos. Um motorista, irritado por ter seu caminho obstruído, simplesmente seguiu em frente, atropelando uma jovem. Uma professora foi se queixar. Ele saiu do carro e, segundo ela, desferiu-lhe dois socos no rosto. O homem, que estava com pressa, não pôde retomar seu caminho: foi preso e provavelmente perdeu muito mais tempo do que se tivesse esperado pelo fim do protesto.

Corta de novo.

Repare como há interesses conflitantes nesse incidente, e erros também.

Professores e alunos, querendo se manifestar, obstruíram uma via pública. Estavam errados, infringiram a lei. O motorista irritado não chamou a polícia ou um fiscal de trânsito a fim de resolver o problema e cometeu um erro muitíssimo mais grave do que o dos manifestantes: agrediu duas pessoas. Pior: duas pessoas mais fracas fisicamente, duas mulheres, uma delas quase uma criança.

As pessoas gritavam, quando ele foi preso: “Covarde, covarde!”. Estavam certas, ele foi covarde e merece ser punido.

Corta mais uma vez. Quem é o principal responsável por essa ocorrência? Quem cometeu mais erros?

O Estado.

O homem que partiu para a agressão física não deve por um só segundo ter pensado em pedir a mediação de alguma autoridade, porque no Rio Grande do Sul as autoridades não fazem mediação, não resolvem conflitos, apenas deixam passar.

Mas há uma motivação sub-reptícia, mais sutil e mais cruel, causada pela forma como se comporta o governo do Rio Grande do Sul. Esse é o governo do fracasso anunciado, o governo da depressão, o governo do não, e Chico Buarque já dizia que vence na vida quem diz sim. Há um ano e meio, o governo repete que o Rio Grande do Sul faliu, que tudo acabou. Pode até ser verdade, decerto que é, mas e as soluções? E a saída? Qual é a saída? O governo, afinal, foi eleito para encontrar saídas.

Mas não. O governo, a cada mês, esmaga mais um pouco do que resta do amor-próprio do cidadão. As pessoas estão cansadas no Rio Grande do Sul. As pessoas estão aborrecidas. As pessoas estão com medo. E não há nada que gere mais fúria do que o medo.

Lidar com os outros, naturalmente, já é difícil. Se quem deveria mediar os conflitos se omite, isso se torna quase impossível. Torna-se um inferno. Sim: o governo está transformando o Rio Grande do Sul em um inferno.

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