quarta-feira, 6 de julho de 2016



06 de julho de 2016 | N° 18574 
PEDRO GONZAGA

OS DOIS MOVIMENTOS

E porque já quisemos beber com Átila – nossos corpos ainda ferventes de sangue e suor –, e porque já experimentamos a paz de uma espreguiçadeira num jardim cultivado, e porque vivemos a euforia de nos perdermos de nós mesmos depois de um mês de viagem, e porque sabemos o que é o amor nos olhos de alguém ao chegarmos em casa, percebemos: há em nós uma divisão antiga, nascida ao raiar da espécie, que faz de nossos corações, a um só tempo, nômades e sedentários.

Se considerarmos esses dois movimentos primitivos e contraditórios, descobriremos o modo como dividem tudo o que sentimos, tudo o que somos, tudo o que em nós se move ou se aquieta, e depois se inquieta e volta a se mover. E me perdoem pelo nós, se isso lhes parece uma obviedade. Se o for, prometo que será curta. Agora vejam. Não há apenas uma solidão, mas sim a solidão nômade e a solidão sedentária. 

O que é fim de processo para uma (a vontade de lançar raízes), é o justo início para a outra (as raízes por aqui não vingaram ou precisam ser transmudadas). A dualidade dos sentimentos é a dualidade dos movimentos. Assim também para o amor. O nomadismo do one night stand, contra os laços das criaturas entrelaçadas. Casamento. Separação. Família. Novas famílias.

Se isso não explica o constante desassossego dentro de nós, explica ao menos Ouro de tolo, do Raul Seixas, e o “estar-se preso por vontade” do mais célebre soneto de Camões, além dos confortos das grandes religiões, a nos prometer a unidade sedentária com o Pai e a santa mãe no calvário, ou o tudo passa de um mundo nômade e ilusório feito um rio.

Durante anos comprei os livros que compõem a pequena biblioteca onde agora escrevo. Livros são quase sempre objetos sedentários. Em nossas mãos ou bagagens, no entanto, passam a ser nômades. (O que dizer dos livros digitais?)

Durante anos pensei que minha casa estaria onde meus livros estivessem. Mas hoje sinto que me basta o que as mãos puderem levar.

Não se trata de um aprendizado, nem de evolução. Iluminação, para mim, fica melhor indireta. É um momento nômade em um corpo, este sim, que ainda não cansou de ser sedentário.

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