14 de julho de 2016 | N° 18581
DAVID COIMBRA
Josué e o fim do mundo
As coisas do mundo acontecem em bloco. Pense numa loja de ferragens. Não. Pense em algo mais interessante: pense em um bar. Um bar específico de Porto Alegre, o Jazz Café, que existia num tempo remoto, os anos 1990.
O Jazz Café foi aberto pelo Dirceu Russi na Fernando Gomes, atrás da Caixa d’Água. Naquele tempo, aquela área do Moinhos de Vento era pacatamente residencial. Havia só o Café do Porto, lá adiante, na Padre Chagas, e quase nenhum outro comércio. Foi o Ricardo Carle quem primeiro nos instou a ir ao Jazz Café, a fim de prestigiar o Dirceu.
Fomos em alegre bando, nos carros do Professor Juninho e da Mariana Bertolucci. Estacionamos bem na frente do bar – tinha vaga. Era uma rua escura e erma. Os únicos seres humanos visíveis, fora nós, eram o Dirceu e o Zini, que conversavam com os cotovelos fincados no balcão.
Bem. Passamos a frequentar o Jazz Café. Um dia, estourou a notícia de que no prédio contíguo, parede com parede, abriria outro bar: o Lilliput. O Dirceu Russi ficou chateado.
– Concorrência... – lamentou. Lembro de ter dito: – Que nada! A companhia vai ser boa!
De fato, em poucos meses, a Fernando Gomes dominou a noite de Porto Alegre. Outros bares e restaurantes foram pipocando no entorno, o pedaço de rua ocupado pelo Jazz e o Lilliput virou a Calçada da Fama e todos viveram felizes para sempre.
O ser humano é movido pela tendência de repetir o que deu certo, seja um bar, uma ferragem ou uma forma de expressão artística. Essa é a lógica da feira livre e dos shoppings centers. Essa é, também, a lógica dos inteligentes: os bons não têm medo da concorrência; eles se cercam de bons e bebem do seu talento.
A vida se move em camadas. E termina em camadas também. Ontem falei sobre um mundo que acabou no começo do milênio 21 e de outro que começou, devido ao celular e à internet. Houve vários eventos que marcaram o fim daquele mundo, além das novas facilidades da comunicação. O mais espetacular deles, a derrubada das Torres Gêmeas, em 2001. Foi como assistir à Queda de Constantinopla ou à Tomada de Roma pelos Bárbaros ao vivo, pela TV.
O fim do futebol brasileiro também teve o seu marco, com a fuga de Ronaldinho do Grêmio para o PSG na mesma época. Nosso último craque foi o símbolo de um mundo que acabou, um mundo que havia começado, exatamente, com o craque que deu o nome à lei de morte do futebol brasileiro: Pelé.
E repare: Pelé ganhou a primeira Copa com Garrincha, Didi e Nilton Santos. Um conjunto de craques.
Na arte, igual: mais ou menos ao mesmo tempo, entre os séculos 15 e 16, mais ou menos no mesmo lugar, a Itália, reluziram Michelângelo, Leonardo, Rafael e Bernini. Depois, entre os séculos 19 e 20, na França, explodiram as cores de Van Gogh, Renoir, Monet, Manet e Degas. E no meridião do Brasil houve também um tempo cintilante, em que escreveram Erico Verissimo, Dyonélio Machado e Josué Guimarães, o trio de ferro das letras gaúchas.
E agora, das sombras do novo mundo virtual, surge um boato que parece discussão daquele mundo antigo, que não existe mais: de que Josué teria sido espião da KGB. Pus-me a pensar: o que teria Josué a oferecer aos soviéticos, além de histórias tocantes e parágrafos impecáveis? Que informação privilegiada poderia ter um espião que estivesse fora do sistema, como ele sempre esteve?
Pobre Josué: vítima de um mundo que nunca poderia ser o seu.
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