16 de julho de 2016 | N° 18583
CARPINEJAR
Guardadora
Não sou de fazer suspense nem sei contar piada.
Eu sou a própria piada, o que estraga qualquer contação de história. Sou mais engraçado quando fico sério. Nasci na época errada: um astro do cinema mudo no século 21.
Nunca seguraria um segredo biográfico até a morte de alguém, ou não seria capaz de não transar antes do casamento. Evito realizar promessas de propósito para não ser amaldiçoado. Não juro beijando os dedos.
Não poderia participar de nenhuma máfia porque seria morto na primeira semana. Eu me desperdiço rápido, com tendência letal à fofoca. Nem vivi ainda e já estou contando. Para mim, véspera já é notícia, quase acontecimento é experiência. Preciso cuidar para a minha ansiedade não atropelar a existência.
Mas há gente com o dom de se guardar para os grandes momentos. Com a vocação de reunir as forças para o apogeu da sensibilidade. Como a Luiza. A Luizinha de Nazaré, de 77 anos, que mora sozinha em Anta Gorda (RS), a 190 quilômetros de Porto Alegre.
Ela sofre de osteoporose. Às vezes, tem crises sérias a ponto de não ter força para se levantar. Fica acabada, triste, com ossos frouxos, como um quebra-cabeça que carece de algumas peças, e depende de ambulância para ser decifrada pelo seu doutor em Porto Alegre.
Os plantonistas do hospital local não tiram uma palavra de sua boca, uma descrição do que está acontecendo em seu corpo, um sintoma qualquer, não têm nem informações para preencher o prontuário. Entram em pânico com o silêncio irredutível de Luizinha.
Ela não fala. Só fala na presença de seu médico. Seu médico é seu advogado. Parece que a doença é um crime pessoal.
Entra calada e sai calada da emergência do hospital da cidade, só troca gemidos e resmungos com os enfermeiros.
Testemunhando a aflição infinda da paciente e desconhecendo o seu temperamento arisco, um dos socorristas inventou de oferecer um analgésico para aliviar a sua tormenta. Ela começou a gritar sem parar, como um alarme de carro.
Luizinha ficou profundamente ofendida com a oferta. No fim, explicou para o perplexo atendente:
– De modo nenhum, não quero tomar nada para me aliviar. Quero chegar ao médico com toda a minha dor.
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